Aqui vão algumas opiniões e comentários que tenho a fazer sobre os trechos do Livro V de The consolation of philosophy, de Boécio, que traduzi e publiquei no meu outro blog em duas partes (parte 1 e parte 2). Os trechos comentados aparecem entre aspas e em itálico, e minhas palavras vêm em seguida.
1. "Podemos ver muitas ações se desenvolvendo diante de nossos olhos; assim como os condutores de carruagens veem o desenvolvimento de suas ações enquanto controlam e guiam suas carruagens, e muitas outras coisas igualmente. Alguma necessidade impele alguma dessas coisas à ocorrência? É claro que não."
Essa negação está longe de me parecer autojustificada, de modo que não posso concordar com Boécio neste ponto. No entanto, esse fato parece afetar muito pouco a essência de seu argumento.
2. "Daí se segue que são coisas cuja ocorrência é inteiramente livre de necessidade."
Boécio várias vezes utiliza termos que considero inapropriados para qualificar a liberdade humana: "absoluta", "inteiramente livre", "perfeitamente livre e irrestrita", "perfeita". Isso é, na melhor das hipóteses, um exagero.
3. "Pois não penso que haja algum homem que dirá isso, que as coisas que são feitas no presente estavam para acontecer no passado, antes que acontecessem."
Hoje em dia há muita gente que pensa assim. Seguindo o teólogo McGregor Wright (só para dar um exemplo que li recentemente), dou a isso o nome de determinismo.
4. "Pois todo objeto que é conhecido não é compreendido de acordo com sua própria força, e sim de acordo com a natureza daqueles que o conhecem."
A defesa desse ponto de vista é, em minha opinião, o que há de mais interessante na exposição de Boécio.
5. "Nos dias antigos o Pórtico de Atenas nos deu homens que enxergavam mal, como se fossem velhos. Eles se convenceram de que as sensações dos sentidos e a imaginação não eram senão impressões feitas por corpos sobre uma mente que nada continha, assim como o antigo costume era de imprimir com ágeis canetas letras sobre a superfície de uma barra de cera que não continha marca alguma."
Refere-se aos estóicos, e o ponto de vista aqui corretamente denunciado como falso tornou-se muito popular no século XVIII, gerando toda uma corrente da filosofia inglesa: o empirismo.
6. "Portanto, se nós, que compartilhamos da posse da razão, pudéssemos ir além e possuir o juízo da mente de Deus, pensaríamos então ser mais justo que a razão humana se rendesse à mente de Deus, assim como determinamos que os sentidos e a imaginação devem se render à razão."
Eis a essência do argumento de Boécio para a compatibilidade entre a onisciência de Deus quanto ao futuro e a liberdade humana. Ele não fala em termos de decreto divino, e sim apenas da presciência. Apesar disso, tenho a impressão de que seu argumento permite estender a mesma conclusão ao primeiro.
7. "Portanto, desde que tudo o que é conhecido é apreendido, como já mostramos, não de acordo com sua natureza, e sim de acordo com a natureza do conhecedor, examinemos, até onde pudermos, o caráter da natureza divina, de modo a sermos capazes de aprender o que é esse conhecimento."
Também achei muito interessante o contexto no qual Boécio introduziu sua clássica definição de eternidade. Eu já a conhecia, naturalmente, mas entendê-la à luz da discussão precedente sobre a diferença entre os modos de conhecimento das mentes divina e humana foi, para mim, deveras surpreendente.
8. "Portanto, pessoas que ouvem que Platão pensava que este universo não teve princípio no tempo e não terá fim não estão corretas em pensar que dessa forma o mundo criado é coeterno com seu Criador."
Boécio aparentemente subscreve a tese da infinitude temporal do mundo, que ele, no entanto, distingue da eternidade propriamente dita. Eu, naturalmente, não concordo com ele nesse ponto, mas não deixa de ser logicamente válida a desvinculação promovida por ele entre a ideia de independência ontológica da matéria em relação a Deus e a mera existência temporalmente irrestrita dessa mesma matéria.
9. "Por que, então, exiges que todas as coisas ocorram por necessidade, se a luz divina repousa sobre elas, enquanto os homens não julgam necessárias essas coisas tais como as veem?"
Embora isso esteja longe de constituir por si só um argumento contra o determinismo, considero sensato esse apelo à experiência humana, sobretudo na ausência de evidência conclusiva em contrário.
10. "Por exemplo, quando vês ao mesmo tempo um homem caminhando sobre a terra e o sol se levantando nos céus, vês ambas as coisas simultaneamente, e contudo distingues entre elas e decides que um está se movendo voluntariamente, e o outro necessariamente."
Boécio parece tomar os termos "livre" e "voluntário" como sinônimos. Oponho-me a esse uso. A fim de evitar confusão, prefiro entender como "voluntário" um ato que é consoante à vontade do agente, pouco importando se ela é livre ou não.
11. "De modo semelhante, a percepção de Deus desce sobre todas as coisas sem perturbar de modo algum sua natureza."
Esse argumento é falho por ignorar que Deus não é mero observador casual e passivo dos eventos que se desenrolam, e sim possibilitador e autor do decreto que conduz a eles. Apesar disso, creio haver algo de válido nessa afirmação: a percepção de que a natureza e o rumo das coisas não são alterados ou restringidos pelo mero testemunho da mente divina.
12. "Pois há dois tipos de necessidade. Uma é simples; por exemplo, um fato necessário, 'todo homem é mortal'. A outra é condicional; por exemplo, se sabes que um homem está andando, ele só pode estar andando."
Essa distinção entre os dois tipos de necessidade, a simples e a condicional, é muito útil e deveria permanecer na mente das pessoas. O esquecimento dessa distinção leva à confusão da infalibilidade do decreto divino com uma determinação inerente às coisas.
13. "Podes mudar teu propósito, mas desde que toda verdade da Providência sabe em seu presente que podes fazer assim, e se o farás, e em que direção o mudarás, não podes fugir à presciência divina; assim como não podes evitar o olhar de um olho presente, embora possas por tua livre vontade entregar-te a todo tipo de ação."
Essa afirmação demonstra que Boécio de fato não fez plena justiça ao decreto divino enquanto tal, e sim apenas à presciência. Desse modo, não me parece que ele tenha alcançado uma solução completa para o problema.
14. "Pois esse poder de conhecimento, mesmo no presente e abarcando todas as coisas em sua percepção, restringe todas as coisas, e nada deve aos eventos futuros, dos quais nada recebeu."
Apenas aqui parece haver um vestígio do decreto divino.
1. "Podemos ver muitas ações se desenvolvendo diante de nossos olhos; assim como os condutores de carruagens veem o desenvolvimento de suas ações enquanto controlam e guiam suas carruagens, e muitas outras coisas igualmente. Alguma necessidade impele alguma dessas coisas à ocorrência? É claro que não."
Essa negação está longe de me parecer autojustificada, de modo que não posso concordar com Boécio neste ponto. No entanto, esse fato parece afetar muito pouco a essência de seu argumento.
2. "Daí se segue que são coisas cuja ocorrência é inteiramente livre de necessidade."
Boécio várias vezes utiliza termos que considero inapropriados para qualificar a liberdade humana: "absoluta", "inteiramente livre", "perfeitamente livre e irrestrita", "perfeita". Isso é, na melhor das hipóteses, um exagero.
3. "Pois não penso que haja algum homem que dirá isso, que as coisas que são feitas no presente estavam para acontecer no passado, antes que acontecessem."
Hoje em dia há muita gente que pensa assim. Seguindo o teólogo McGregor Wright (só para dar um exemplo que li recentemente), dou a isso o nome de determinismo.
4. "Pois todo objeto que é conhecido não é compreendido de acordo com sua própria força, e sim de acordo com a natureza daqueles que o conhecem."
A defesa desse ponto de vista é, em minha opinião, o que há de mais interessante na exposição de Boécio.
5. "Nos dias antigos o Pórtico de Atenas nos deu homens que enxergavam mal, como se fossem velhos. Eles se convenceram de que as sensações dos sentidos e a imaginação não eram senão impressões feitas por corpos sobre uma mente que nada continha, assim como o antigo costume era de imprimir com ágeis canetas letras sobre a superfície de uma barra de cera que não continha marca alguma."
Refere-se aos estóicos, e o ponto de vista aqui corretamente denunciado como falso tornou-se muito popular no século XVIII, gerando toda uma corrente da filosofia inglesa: o empirismo.
6. "Portanto, se nós, que compartilhamos da posse da razão, pudéssemos ir além e possuir o juízo da mente de Deus, pensaríamos então ser mais justo que a razão humana se rendesse à mente de Deus, assim como determinamos que os sentidos e a imaginação devem se render à razão."
Eis a essência do argumento de Boécio para a compatibilidade entre a onisciência de Deus quanto ao futuro e a liberdade humana. Ele não fala em termos de decreto divino, e sim apenas da presciência. Apesar disso, tenho a impressão de que seu argumento permite estender a mesma conclusão ao primeiro.
7. "Portanto, desde que tudo o que é conhecido é apreendido, como já mostramos, não de acordo com sua natureza, e sim de acordo com a natureza do conhecedor, examinemos, até onde pudermos, o caráter da natureza divina, de modo a sermos capazes de aprender o que é esse conhecimento."
Também achei muito interessante o contexto no qual Boécio introduziu sua clássica definição de eternidade. Eu já a conhecia, naturalmente, mas entendê-la à luz da discussão precedente sobre a diferença entre os modos de conhecimento das mentes divina e humana foi, para mim, deveras surpreendente.
8. "Portanto, pessoas que ouvem que Platão pensava que este universo não teve princípio no tempo e não terá fim não estão corretas em pensar que dessa forma o mundo criado é coeterno com seu Criador."
Boécio aparentemente subscreve a tese da infinitude temporal do mundo, que ele, no entanto, distingue da eternidade propriamente dita. Eu, naturalmente, não concordo com ele nesse ponto, mas não deixa de ser logicamente válida a desvinculação promovida por ele entre a ideia de independência ontológica da matéria em relação a Deus e a mera existência temporalmente irrestrita dessa mesma matéria.
9. "Por que, então, exiges que todas as coisas ocorram por necessidade, se a luz divina repousa sobre elas, enquanto os homens não julgam necessárias essas coisas tais como as veem?"
Embora isso esteja longe de constituir por si só um argumento contra o determinismo, considero sensato esse apelo à experiência humana, sobretudo na ausência de evidência conclusiva em contrário.
10. "Por exemplo, quando vês ao mesmo tempo um homem caminhando sobre a terra e o sol se levantando nos céus, vês ambas as coisas simultaneamente, e contudo distingues entre elas e decides que um está se movendo voluntariamente, e o outro necessariamente."
Boécio parece tomar os termos "livre" e "voluntário" como sinônimos. Oponho-me a esse uso. A fim de evitar confusão, prefiro entender como "voluntário" um ato que é consoante à vontade do agente, pouco importando se ela é livre ou não.
11. "De modo semelhante, a percepção de Deus desce sobre todas as coisas sem perturbar de modo algum sua natureza."
Esse argumento é falho por ignorar que Deus não é mero observador casual e passivo dos eventos que se desenrolam, e sim possibilitador e autor do decreto que conduz a eles. Apesar disso, creio haver algo de válido nessa afirmação: a percepção de que a natureza e o rumo das coisas não são alterados ou restringidos pelo mero testemunho da mente divina.
12. "Pois há dois tipos de necessidade. Uma é simples; por exemplo, um fato necessário, 'todo homem é mortal'. A outra é condicional; por exemplo, se sabes que um homem está andando, ele só pode estar andando."
Essa distinção entre os dois tipos de necessidade, a simples e a condicional, é muito útil e deveria permanecer na mente das pessoas. O esquecimento dessa distinção leva à confusão da infalibilidade do decreto divino com uma determinação inerente às coisas.
13. "Podes mudar teu propósito, mas desde que toda verdade da Providência sabe em seu presente que podes fazer assim, e se o farás, e em que direção o mudarás, não podes fugir à presciência divina; assim como não podes evitar o olhar de um olho presente, embora possas por tua livre vontade entregar-te a todo tipo de ação."
Essa afirmação demonstra que Boécio de fato não fez plena justiça ao decreto divino enquanto tal, e sim apenas à presciência. Desse modo, não me parece que ele tenha alcançado uma solução completa para o problema.
14. "Pois esse poder de conhecimento, mesmo no presente e abarcando todas as coisas em sua percepção, restringe todas as coisas, e nada deve aos eventos futuros, dos quais nada recebeu."
Apenas aqui parece haver um vestígio do decreto divino.
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