sábado, 29 de maio de 2010

Um mundo com significado V

O trecho abaixo exprime bem o que me parece ser o principal efeito nocivo da matematização das ciências, algo que muito raramente é enfatizado pelos historiadores e filósofos da ciência, segundo tenho visto até aqui. O livro não tem referências bibliográficas, mas não posso deixar de notar uma semelhança considerável entre o que é dito aqui e a abordagem de George Steiner sobre o mesmo tema. Deste último jamais li coisa alguma, mas tomei conhecimento de suas reflexões sobre o assunto - que me pareceram, aliás, muito interessantes - graças ao meu amigo Gustavo, que resumiu bem a questão neste curto e bem escrito post, cuja leitura recomendo aos interessados.

"Darwin viu outra coisa na natureza, diferente dos campos de belos narcisos nos prados, de William Wordsworth - uma filha morta e a natureza 'rubra em presas e garras'. Não há Deus presente, ele presumiu, a não ser o deus da necessidade, uma lei fixa e elegante. Seus seguidores iriam ainda mais longe, submetendo as belezas selvagens do mundo vivo à chancela da rubrica matemática: fazendo, a todo custo, que a natureza se encaixasse na ordem matemática, reduzindo-a totalmente a números, probabilidades, taxas de mutação. Adornaram-na com vagas referências à complexidade e à teoria do caos - conversas infindáveis sobre tudo, menos sobre o organismo vivo que respira.

Para entender o que deu errado, teremos de voltar às palavras de Galileu - o pressuposto de que a matemática (para ele, principalmente a geometria de Euclides) seja tão maravilhosamente efetiva que sem sua 'linguagem [...] será impossível compreender sequer um de seus termos; sem seu auxílio, vaguear-se-á sem rumo por um escuro labirinto'. Aqui, o astrônomo e físico - maravilhado com as regularidades matemáticas que havia descoberto - permitiu que lhe fugisse a retórica. Expressou o assombroso entendimento de que a matemática é uma ferramenta efetiva para discernir a ordem da natureza, mas não é o caso de a natureza ser incompreensível sem a matemática. Esse ponto de vista, mais tarde, levou seus seguidores a crer que aquilo que não pode se resumir a expressões matemáticas não existe ou é apenas uma projeção 'subjetiva' de natureza essencialmente matemática. Em tal ponto de vista, a única linguagem significativa seria a da matemática, mas, porque nossa experiência e linguagem diárias não são governadas pela matemática, não estariam significativamente relacionadas com a realidade. Como resultado, reflexões profundas baseadas em nossa linguagem e experiência cotidianas são tidas como sem fundamento. Fora com Shakespeare, Aristóteles, Tomás de Aquino e todo e qualquer dramaturgo, filósofo ou teólogo que não fale a língua dos matemáticos! Vivam os matematicos, químicos e físicos e, depois deles, diversos agregados, cientistas sociais e psiquiatras!"

Adendo: o Gustavo também escreveu outros dois curtos e interessantes posts sobre Steiner e suas ideias: este e este outro. O amigo mencionado no primeiro sou eu.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XV

No trecho abaixo, Revel traz informações estarrecedoras sobre o lado podre da América - ou, pelo menos, um dos lados mais notoriamente podres. Essa é uma boa amostra do poder de que dispunha a esquerda radical americana já nos anos 60 - apoiada, ironicamente, por um bando de ricaços que, a julgar pela teoria marxista, seriam os principais interessados em combatê-la. No caso em questão, trata-se dos Panteras Negras, grupo devotado ao terrorismo como meio de luta contra a discriminação dos negros. O trecho mostra também o quanto a situação real do embate político americano foi distorcida pela imprensa europeia, somando assim um exemplo a mais à infindável lista de modos pelos quais os revolucionários se aproveitam dos crimes de seus próprios comparsas para caluniar seus adversários. Algo que já estamos cansados de ver aqui nesta parte do mundo... Fiquei com a impressão de que Revel era não só honesto demais para aderir à ampla campanha de difamação antiamericana empreendida pelos governos e partidos comunistas em todo o mundo (inclusive nos Estados Unidos), mas também ingênuo demais para sequer suspeitar que, por trás de tantas mentiras e distorções divulgadas pela imprensa francesa sobre a grande potência do Ocidente, pudesse haver algo além da mera burrice.

"Os Panteras Negras são extremistas que, em todos os seus programas, afirmam abertamente a intenção de praticar atentados e assassinatos políticos. De um ponto de vista revolucionário, pode-se aprovar ou não sua ação; mas, do ponto de vista do Direito, qualquer que seja a sociedade, é puro delírio qualificar de 'fascista' o fato de eles serem inculpados, pois pergunto, então, em que regime colocar bombas nos edifícios públicos não seria objeto de algum processo. Os revolucionários americanos encontram-se, de fato, numa posição ideal: beneficiam-se de todas as vantagens do sistema cujos inconvenientes denunciam... É a situação do rendimento revolucionário máximo, nomeadamente no plano da propaganda. Os efeitos, aliás, estão à vista: os Panteras desfrutam de vasta simpatia no seio do Establishment. Um dos mais célebres maestros do mundo deu, em janeiro de 1970, em seu apartamento de Nova York, uma recepção em honra aos chefes do movimento à qual compareceram personagens não menos célebres das letras, das artes e da política. Um relatório do F.B.I., em julho, deplorou que os Panteras recebam importantes fundos de ilustres doadores, grandes nomes dos Estados Unidos. Quanto ao processo dos 'Sete de Chicago', inculpados depois dos motins desencadeados por ocasião da Convenção Democrata de 1968, na Europa destacou-se sobretudo a extraordinária chuva de sanções por ofensas à magistratura que se abateu, durante as audiências, sobre acusados e advogados. Mas esquecem-se de que estes últimos adotaram a tática deliberada de recorrer sistematicamente à provocação, tratando o presidente do tribunal, Julius Hoffmann, por 'Juliette', despindo-se na pretoria, ganindo, miando e exigindo que se retirasse da parede e levasse da sala das sessões o retrato de Washington, 'esse traficante de escravos'. A tática tinha, talvez, aspectos positivos, mas não se vê o que poderia fazer o presidente senão aplicar sanções por 'ofensas à magistratura', o que, aliás, não o impediu de ser tratado como louco paranóico por largos setores da imprensa americana. Perguntaram os juristas o que fazer em tal caso. Julgar os acusados na sua ausência? Impossível, legalmente. Colocá-los numa cabine de vidro à prova de som? Difícil, tecnicamente. Como troça a esta última sugestão, um acusado se fez fotografar, por escárnio, com uma mordaça na boca e um cartaz: 'No futuro, é assim que se será julgado nos Estados Unidos', e a fotografia foi reproduzida num jornal europeu como ilustrando uma medida preconizada, assim se escrevia, pelo ministério público! Em resumo, os acusados foram absolvidos pelo júri da acusação de terem 'transposto a fronteira de um estado com a intenção de ali fomentar desordens', segundo o texto da lei que a acusação ali desejaria ver aplicada. Cinco foram condenados por agressões e ferimentos e libertados sob fiança - paga por 'generosos doadores'."

domingo, 23 de maio de 2010

The consolation of philosophy II

Ainda no Livro I, começam a aparecer lições interessantes. Após queixar-se abundantemente de sua sorte, o narrador eleva a Deus esta bela oração:

"Ó Fundador do universo cravejado de estrelas, assentado em Teu eterno trono, donde giras o céu, que rola com rapidez, e obrigas as estrelas a seguir Tua lei; por Tua palavra a lua agora brilha vivamente em toda a sua face, sempre voltada para a luz de seu irmão, e assim obscurece as luzes menores; ou agora está ela própria obscurecida, pois perto do sol seus feixes mostram apenas seus pálidos chifres. Fria sobe a Estrela da Tarde junto ao primeiro esboço da noite: é a mesma a Estrela da Manhã, que abandona a armadura que usara antes e, pálida, encontra o sol ascendente. Quando o frio do inverno desnuda as árvores, estabeleces uma duração mais curta ao dia. E, quando o verão esquenta, alteras as curtas divisões da noite. Teu poder ordena as estações do ano, de modo que a brisa ocidental da primavera traga de volta as folhas que o vento setentrional do inverno levou embora; de modo que a Estrela do Cão amadureça as espigas de milho cuja semeadura Arcturus observara. Nada quebra essa antiga lei; nada deixa por fazer o trabalho designado para si. Assim, governas todas as coisas com limites fixados; apenas as vidas dos homens recusas-te a refrear, como um guardião, impondo limites. Pois por que a Fortuna, com sua mão inconstante, distribui sortes tão mutáveis? A pena dolorosa é o pagamento pelo crime, mas recai sobre a cabeça sem pecado; homens depravados repousam em paz sobre altos tronos, e por sua sorte injusta podem esmagar sob seus perniciosos calcanhares os pescoços de homens virtuosos. Sob sombras obscuras jaz oculta a brilhante virtude; o homem justo suporta a infâmia do injusto. Eles não sofrem com juramentos falsos, não sofrem com crimes minimizados por suas mentiras. Mas quando seu desejo é aumentar sua força, eles com triunfo subjugam os mais poderosos reis, a quem temem os milhares do povo. Ó Tu que apertas os laços da Natureza, olha para baixo, para esta terra miserável! A raça humana é a parte vil dessa grande obra, e somos agitados pela onda da Fortuna. Dá repouso à tempestade, ó nosso Guardião, que a tudo inunda e, assim como governas o céu ilimitado, com laços semelhantes torna verazes e firmes estas terras."

Pouco depois, a Filosofia lhe dá uma bela bronca por ter falado desse modo contra a soberania de Deus. Todos já vimos isso em algum lugar:

"Então ela disse:
'Pensas que este universo é guiado apenas a esmo e por mero acaso? Ou pensas que há algum governo racional constituído nele?' 'Não, eu jamais pensaria que pode ser assim, nem creria que tão certos movimentos poderiam ser feitos a esmo ou por acaso. Sei que Deus, o Fundador do universo, supervisiona sua obra; não poderá jamais chegar um dia que me levará a abandonar essa crença como falsa.' 'Assim é', disse ela, 'e no entanto choraste agora mesmo, e só lamentaste que apenas a humanidade não tem parte nessa tutela divina; estavas firme em tua crença de que todas as demais coisas são governadas pela razão. Quão estranho! Como eu gostaria de saber como é que você se tornou tão doente, embora estejas firme num estado mental tão saudável!'"

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XIV

O livro traz um capítulo intitulado Antiamericanismo e a revolução americana, dedicado, creio eu, ao mesmo assunto que, vinte e poucos anos mais tarde, resultaria num livro inteiro escrito pelo mesmo autor. O trecho que transcrevo a seguir capta bem o espírito de toda essa parte do livro, que denuncia nos esquerdistas franceses o erro de, preocupados em coar o mosquito americano, engolir repetidamente o camelo europeu. O assunto em questão é o antissemitismo. Revel narra aqui uma conversa que teve com "uma romancista de extrema-esquerda" pouco tempo depois de ter retornado de uma viagem aos Estados Unidos.

"[Ela] me perguntou em tom imperativo (a resposta não poderia deixar de ser afirmativa, na sua opinião) se persistia o antissemitismo de sempre na América. Respondi que, com efeito, sabia desde muito existir certa discriminação em vários clubes e até nalguns restaurantes, mas que nunca tivera ocasião, durante as minhas estadas, de verificar diretamente esse fenômeno. Ela contra-atacou vigorosamente, oferecendo-se para me dar uma lista de vinte ou trinta restaurantes de Nova York onde os pedidos de reservas de mesas feitos pelos que têm sobrenomes judaicos eram, dizia ela, recusados. Curvei a cabeça, retorquindo que isso era possível, embora eu não o houvesse notado. Ficamos nisso, e foi só mais tarde que me invadiu a sensação do descaramento que havia, da parte duma francesa, em fazer tais afirmações. Pois, afinal, qual a razão por que existem atualmente seis milhões de judeus na América do Norte? Apenas porque eles, ou seus pais e avós, foram expulsos da Europa pelas perseguições que lhes moveram e porque houve pogroms na Rússia, no princípio do século, na Hungria, na Romênia e na Polônia! Somente por terem existido Hitler e as leis raciais de Vichy, que fizeram grande investida contra os judeus franceses! No momento mesmo em que essa senhora me 'bicava', surgiam de novo, na França, estranhos delírios coletivos - o 'boato de Orleans', o 'boato de Amiens'; nessas cidades corria o boato de que, em lojas judias, mulheres sumiam por alçapões, tão logo entravam. A Europa bárbara, sanguinária, policial, fanática e mesquinha havia desde sempre praticado incansavelmente o antissemitismo, de todas as modalidades, da perseguição ao genocídio organizado; ela chegara, nesse campo, à verdadeira apoteose, no século mesmo em que vivemos: matara, apenas no decorrer da Segunda Guerra Mundial, quase o dobro de quantos judeus existem atualmente na América do Norte (se se acrescentarem às vitimas dos campos de morte alemães as que foram chacinadas no resto da Europa). E eu tinha ainda de ouvir uma europeia, uma francesa, fazer a acusação do antissemitismo na América, a propósito de histórias de mesas de restaurante!"

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Esses livres-pensadores são engraçados (II)

Collins escreveu uma obra anticlerical e de tons panteístas. Na Enciclopédia do protestantismo, ainda leio, em continuação ao parágrafo do post anterior:

…a obra Answer to Mr. Clarke’s Third Defence of His Letter to Mr. Dodwell (Londres, Darby, 1711) deixa entrever que, assim como Toland, Collins crê na matéria eterna e incriada.

Entendo. Quer dizer que, para Collins, precisamos urgentemente de liberdade em relação a um Deus eterno, pessoal, bondoso, gracioso e imutável, que sacrificou Seu Filho por nós, enquanto não há problema algum em ser escravo de uma pobre matéria eterna e incriada?

Esses livres-pensadores são mesmo muito engraçados!

Esses livres-pensadores são engraçados (I)

Leio na Enciclopédia do protestantismo (a sair pela editora Hagnos) esse trecho sobre Anthony Collins (1676-1729):

Em Discourse of Free Thinking [Discurso sobre a liberdade de pensamento] (1713, Londres, 1714), a ênfase de Anthony Collins não é tanto os fundamentos do livre-pensamento, no sentido estrito da expressão, mas sim do pensamento livre, baseando-se portanto na única razão da ausência de qualquer tipo de autoridade exterior. No entanto, sua defesa e sua ilustração da liberdade de pensamento não excluem a convicção de que o determinismo é universal.

Em outras palavras, Collins reclama para si e para a humanidade o direito de pensar livremente que, no mundo, ninguém pensa nem faz nada livremente.

Esses livres-pensadores são engraçados!

domingo, 16 de maio de 2010

História da mentalidade científica

Nesta postagem vou apenas listar alguns trabalhos valiosos para quem se interessa pelas origens da mentalidade científica moderna, ou seja, pelos elementos filosóficos e teológicos que, para o bem ou para o mal, exerceram influência decisiva sobre os grandes cientistas e sobre a comunidade científica em geral. A lista a seguir não está em ordem de importância, e sim na ordem em que os li. Ficarei muito agradecido se o leitor que porventura conheça outros trabalhos relevantes puder compartilhar suas sugestões comigo.

1. Christianity and the birth of science, de Michael Bumbulis: tenho vários desacordos quanto às posturas do autor (ele é evolucionista, por exemplo), mas esse longo artigo é valioso por suas informações sobre a influência da escolástica posterior e sua visão sobre a conturbada relação atual entre a ciência e a pós-modernidade.

2. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica, de Pierre Thuillier: uma interessante coleção de ensaios sobre diversos elementos que resultaram em ideias científicas influentes, presentes, por exemplo, na arte renascentista ou nas posições teológicas de Darwin e Einstein.

3. A Revolução Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental, de Thomas Kuhn: o título explica a si mesmo. A despeito de equívocos quanto a certos detalhes, o livro é excelente pela abrangência e pelo tratamento não-amadorístico das questões técnicas da astronomia antiga e sua importância nos debates científicos e filosóficos dos séculos XVI e XVII. Kuhn nos apresenta aqui um ótimo exemplo histórico dos princípios gerais enunciados em seu clássico A estrutura das revoluções científicas.

4. A revolução científica e as origens da ciência moderna, de John Henry: esse pequeno livro traz uma excelente introdução ao assunto, descrevendo as principais questões atualmente debatidas pelos historiadores da ciência e fornecendo uma extensa bibliografia para os interessados em um aprofundamento.

5. Physical science in the Middle Ages, de Edward Grant: uma excelente exposição de como os pensadores da escolástica posterior anteciparam vários dos princípios da ciência pós-Galileu e, ao mesmo tempo, não romperam com a tradição científica aristotélica nos pontos essenciais.

6. Do mundo fechado ao universo infinito, de Alexandre Koyré: livro cheio de insights maravilhosos e muito bem escrito sobre a evolução do conceito de espaço em sua relação com a ciência moderna e com os sistemas metafísicos racionalistas, empiristas, neoplatônicos e neopagãos.

7. The fractal geometry of nature, de Benoît Mandelbrot: livro já bastante comentado neste blog, e cujo propósito fundamental não é histórico. Apesar disso, Mandelbrot fornece muitas pistas interessantes sobre a história da relação entre as ciências naturais e a matemática. No contexto da presente postagem, o livro tem seu valor incrementado pelo fato de que o próprio autor foi um matemático que deu enormes contribuições no campo pioneiro da geometria dos fractais, e nesse livro ele nos dá várias indicações sobre a origem de suas ideias. Trata-se, pois, da rara oportunidade de observar um gênio em ação.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Um mundo com significado IV

Durante a leitura do terceiro capítulo, começaram a se manifestar alguns problemas com a abordagem do livro. O tema geral dos capítulos 2 e 3 consiste em evidenciar a genialidade de Shakespeare na riqueza de sentidos contida em suas peças, demonstrando a harmonia que se manifesta tanto nos aparentemente mais insignificantes pormenores linguísticos quanto nas profundas verdades sobre a natureza humana desveladas no enredo. Esses capítulos também denunciam algumas interpretações superficiais e reducionistas oferecidas por críticos célebres (e geralmente materialistas) para certas peças ou aspectos da obra do grande poeta e dramaturgo inglês. O objetivo patente e declarado de tal empreendimento é traçar paralelos entre a atitude dos críticos diante da obra de Shakespeare e a atitude dos materialistas diante da natureza, nutrindo hábitos mentais que os impedem de reconhecer a genialidade inscrita no objeto analisado.

A ideia parece-me, em princípio, essencialmente válida e até interessante. Não me parece, entretanto, que os autores tenham feito dela uma aplicação consistente. Em primeiro lugar, o texto é cheio de divagações que, embora geralmente interessantes em si mesmas, acabam dando ao conjunto um tom excessivamente popularesco, obtido à custa do rigor na análise.

Em segundo, falta uma boa dose de objetividade: movidos pela ânsia de expor as riquezas da poesia shakespeariana, os autores acabaram produzindo um texto enfadonho e repetitivo que parece jamais atingir seu alvo. O propósito dessa exposição poderia perfeitamente ter sido atingido com eficácia equivalente num espaço mais exíguo e bem aproveitado.

Em parte, e esse é o terceiro problema, essa impressão se deve ao fato de que a analogia almejada não é exprimida com clareza, chegando a parecer que os autores esperam que o leitor a perceba por si mesmo, como se demonstrar a validade da analogia não fosse o propósito principal do livro. É claro que não pode deixar de ser dito, em defesa dos autores, que ainda não concluí a leitura do livro, de modo que essa ausência que agora percebo pode muito bem vir a ser preenchida nos capítulos seguintes. Mas em alguns momentos isso parece pouco provável. Por exemplo: no capítulo 3, depois de doze páginas dedicadas à análise da peça A tempestade, os autores dizem: "Feitas tais considerações sobre a genialidade de Shakespeare, voltemos à natureza". Entretanto, eles não voltam; retomam a discussão sobre Shakespeare antes do fim da página.

Em quarto lugar, e quase paradoxalmente, a profusão de detalhes sobre os diversos níveis de significado nas peças analisadas não produzem a impressão de que os autores conhecem a fundo a obra de Shakespeare ou entendem de crítica literária em geral. A análise literária, ao mesmo tempo em que é prolixa demais para os propósitos de uma analogia com a natureza, é superficial demais pelos padrões de uma análise literária cuidadosa, digna da grandeza das obras estudadas. Ou seja, o livro cai no problema comum a todas as popularizações excessivas, especialmente as que, como no caso em questão, se utilizam da exposição do assunto com fins estritamente pragmáticos, e não movidas primariamente por um interesse genuíno acerca desse mesmo assunto.

Finalmente, as imprecisões conceituais, e mesmo semânticas, são abundantes. Tem-se a impressão de que os autores, embora possuam intuições essencialmente corretas sobre o tema tratado, não possuem o domínio da língua escrita necessário para transmiti-las com clareza. O resultado disso é que pesa sobre o leitor a árdua tarefa de discerni-las em meio às indefinições do texto e formulá-las mais precisamente para si mesmo.

Mas não me entendam mal. A despeito de tudo isso, o livro tem trechos instrutivos, e conservo a esperança de que os capítulos seguintes trarão contribuições interessantes à minha compreensão do assunto.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XIII

Uma coisa que me chama atenção ao longo de toda a argumentação de Revel é a quase total ausência de qualquer componente moral. Ele não defende, por exemplo, o direito dos cidadãos à liberdade, mas sim que convém que o Estado promova essa liberdade a fim de manter abertas as portas da prosperidade e do progresso de sua adorada revolução. Assim, ele condena os regimes totalitários pela obtusidade de seus defensores e pela ineficácia de suas soluções, ou seja, em bases estritamente pragmáticas. Vejo duas explicações possíveis para esse modo de argumentação: ou Revel está se adequando retoricamente ao seu público-alvo, que é todo composto de esquerdistas franceses (pois a esquerda, como todos sabemos, não costuma ligar para o moralismo da burguesia), ou está incorporando a seu próprio modo aquele pragmatismo amoral tão comum entre os defensores do liberalismo político. Mas também é possível - e até mais provável, creio eu - que ambas as explicações sejam verdadeiras.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

The consolation of philosophy

Estou lendo uma tradução inglesa da célebre obra de Anício Mânlio Torquato Severino Boécio, escrita no século VI. O autor é bem conhecido na história da filosofia cristã, mas meu interesse por esse livro cresceu anos atrás, quando descobri que C. S. Lewis a incluiu entre os dez livros que mais influenciaram sua "atitude vocacional" e sua "filosofia de vida". Se bem que nessa lista há outros três que já li, e um deles - a Eneida de Virgílio - não me causou grande impressão, embora a culpa por isso talvez possa ser creditada à tradução e ao fato de eu ser incapaz de ler poemas (ou qualquer outra coisa, na verdade) em latim. Os outros dois - Phantastes, de George MacDonald, e The everlasting man, de Chesterton - são de fato excelentes. A lista completa pode ser encontrada aqui.

Mas voltemos a Boécio. Como era de se esperar, a leitura em inglês belamente literário está sendo difícil; mas, com um pouco de paciência, meu vocabulário está aumentando aos poucos. Só li até agora a primeira das cinco partes que compõem a obra. A narrativa começa com o autor em prantos porque, em sua tentativa de fazer o bem na carreira política, ganhou a inimizade de homens maus e acabou caluniado, condenado e exilado. Vem então a Filosofia, que ele estudou na juventude, personificada como uma mulher majestosa, e começa a conversar com ele. O estilo da prosa me agrada muito.

Adendo: Esta postagem foi escrita em janeiro. Já concluí essa leitura também.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XII

Logo no início do nono capítulo, intitulado Pode-se ir da liberdade ao socialismo, mas não do socialismo à liberdade, Revel expõe de maneira brilhantemente sintética a incoerência (ou hipocrisia) da crítica socialista às liberdades "fajutas" das democracias capitalistas. Referindo-se aos "preconceitos pós-stalinianos, segundo os quais as liberdades ditas 'formais' não têm utilidade revolucionária alguma", o filósofo francês adverte:

"O mais curioso, porém, é que esses desprezadores das liberdades formais são os mais apressados em exigir seus benefícios tão logo tenham o menor contratempo; e em se indignarem, com justa razão (e quanta!) pela apreensão de um jornal ou por uma irregularidade em matéria eleitoral ou judicial. Não gostaria de censurá-los, repito, mas seria necessário entender-se: não se pode, por um lado, bramir porque as vítimas de Franco, ou dos coronéis gregos, ou dos processos de Moscou não foram rodeadas das garantias que as teriam beneficiado na Inglaterra e, de outro, cuspir sobre a democracia inglesa como se fora uma velha podridão liberal."

sábado, 1 de maio de 2010

Um mundo com significado III

Nesses últimos tempos, um dos argumentos preferidos dos materialistas de tipo cientificista contra a existência de um design na natureza tem sido a imperfeição de certas formas e estruturas, sobretudo na biologia. Um exemplo classico foi proposto pelo célebre paleontólogo de Harvard, Stephen Jay Gould; ele gostou tanto desse exemplo que usou-o como título de um de seus livros feitos de coleções de ensaios: O polegar do panda. O panda não tem um polegar verdadeiro, e sim uma simples saliência óssea cuja utilidade para segurar coisas é muito mais restrita. Gould apontou essa estrutura como algo que jamais poderia ter resultado do planejamento cuidadoso por um Deus onisciente. Segundo Richard Dawkins, que ofereceu em seu clássico O relojoeiro cego o mesmo argumento - mas usando outro exemplo, o da retina dos vertebrados - esse tipo de coisa "ofenderia qualquer engenheiro cuidadoso".

A alegação de que estruturas diferentes seriam mais funcionais já foi desmontada por pesquisas mais recentes. No caso em questão, dado que os pandas passam a quase totalidade do tempo agarrando e comendo talos de bambu, um panda com polegar semelhante ao dos primatas rapidamente sofreria de lesão por esforço repetitivo, o que basta para derrubar por completo a pretensão de Gould de ser um engenheiro melhor que Deus. Vários exemplos do mesmo tipo são discutidos neste artigo, cuja leitura recomendo aos interessados.

Contudo, a razão pela qual estou escrevendo este post é que Benjamin Wiker e Jonathan Witt acrescentam uma objeção adicional que considero inteiramente verdadeira: o argumento de Gould e Dawkins é inerentemente reducionista, por desprezar todas as considerações não estritamente pragmáticas.

"Desdenhar a ideia como se fosse patentemente ridícula, indigna de consideração, seria apenas expor pressuposições utilitaristas. Por que, afinal, o mundo de um projetista deveria ser lido como um texto maçante do curso colegial, sem humor, homogêneo e sufocante sob o peso morto de uma voz passiva supostamente neutra? Por que o mundo do projetista não poderia ser divertido, interessante e fascinante, ao mesmo tempo em que é 'trabalhado'? Por que, em resumo, não deveríamos esperar que a criação possua a mesma riqueza, variedade e tom que encontramos em uma obra de arte como Hamlet? A razão pela qual muitos não consideram a ideia é que a discussão sobre 'mau projeto versus bom projeto' é, muitas vezes, enquadrada na perspectiva de um engenheiro, não de um artista ou místico."

Em outras palavras, o cientificismo fez com que muitos cientistas caíssem no vício de enquadrar toda a realidade sob os hábitos mentais desenvolvidos para o trabalho em seus laboratórios e escrivaninhas. E, fazendo isso, perderam a capacidade de prestar atenção a outros aspectos daquilo que estudam seletivamente o tempo todo: a natureza. Creio que há mais sabedoria entre os produtores do filme Dogma, que, a despeito do desfile de blasfêmias que o compõe, foram capazes de captar o senso de humor divino na simples existência do ornitorrinco.