sábado, 27 de fevereiro de 2010

Exposicão de Hebreus VI

"Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo." (Hebreus 10.31)

Transcrevo abaixo parte do comentário de Calvino sobre essa severa sentença bíblica. Ela esclarece, a partir do exemplo de Davi, qual é o fundamento de nossa esperança na misericórdia divina, quando a podridão de nossos pecados ameaça nos levar ao desespero. Não é difícil perceber que por trás das palavras a seguir reside a crença inabalável na absoluta soberania de Deus e no papel importantíssimo dessa crença para a paz interior do crente. Poucos perceberam tão agudamente quanto Calvino a importância disso:

"Os sentimentos de Davi, aparentemente, são contrários a essa cláusula, quando ele declara que é melhor cair nas mãos de Deus que nas mãos dos homens [2 Samuel 24.14]. A resposta a essa questão se torna simples quando consideramos que Davi, em sua confiança na fiel misericórdia de Deus, preferiu ter Deus como Juiz a enfrentar o julgamento dos homens. Embora soubesse que Deus estava justissimamente irado com ele, confiou que receberia a reconciliação divina; porque, ainda que estivesse prostrado em terra, seria, não obstante, erguido pela promessa da graça. Já que sua confiança se apoiava no fato de que Deus não é inexorável, não admira que temesse menos a ira divina que a ira dos homens. O apóstolo, aqui, está declarando que a ira divina é algo espantoso em relação aos réprobos, os quais se encontram privados de qualquer esperança de perdão e nada esperam senão a extrema severidade divina, porquanto as portas que se abrem para a graça divina estão fechadas para eles. Sabemos que Deus é descrito de várias maneiras de acordo com o caráter dos homens a quem ele fala. Essa é a intenção de Davi no Salmo 18.25-26: 'Para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro. Com o puro, puro te mostras; com o perverso, inflexível.'"

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Teologia sistemática II

Postei em meu outro blog uma relação de definições de termos importantes da teologia calvinista, encontradas no livro Teologia sistemática, de Louis Berkhof.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Teologia relacional III

Concluída a leitura do opúsculo Teologia relacional, acabaram-se os livretos do pastor Augustus Nicodemus que ganhei de presente. Gostei muito desse texto. Com sua clareza característica, o autor resume bem os principais aspectos envolvidos nessa "nova" "teologia" "nacional". Todas essas aspas são merecidíssimas, e captam bem a essência da argumentação do pastor Augustus: a teologia relacional prega um deus demonstravelmente diferente do Deus da Bíblia e não é a novidade deveras original que afirma ser, e sim mera reciclagem de heresias antigas reunidas numa formulação essencialmente idêntica à que também já foi apresentada em outras partes do mundo.

O livro foi lançado há menos de dois anos, em janeiro de 2008. Sua conclusão, ao que parece, segue com poucas adaptações o esboço delineado numa postagem publicada pelo pastor Augustus em fevereiro de 2006, intitulada [Mais de] cinco pontos do [meu] calvinismo. Recomendo essa leitura. Vale como uma amostra do livro, que contém, entretanto, uma abordagem mais abrangente.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Exposição de Hebreus V

"Porque Deus não é injusto para olvidar vosso trabalho e o amor que tendes demonstrado para com seu nome, pois ministrastes e continuais ministrando aos santos. E desejamos que cada um de vós continue mostrando até o fim a mesma diligência para a plena certeza da esperança; para que não sejais morosos, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela paciência, herdaram as promessas." (Hebreus 6.10-12)

Comentando o trecho destacado, Calvino faz uma série de observações muito interessantes. A primeira delas parece indicar que os destinatários da epístola sofriam do mesmo mal que hoje atinge os liberais e todos os que se apegam a uma ética puramente imanentista. O reformador acerta em cheio ao diagnosticar esse mal como pagão. O primeiro parágrafo transcrito abaixo é, talvez, mais importante hoje que no século XVI, mas demonstra que certas tentações existem desde sempre. Os outros dois parágrafos são úteis como lição sobre a natureza da fé. Eles mostram que Calvino, tão frequentemente acusado de uma frieza racionalista, tinha plena consciência da diferença entre a fé genuína e a mera convicção intelectual correta sobre assuntos espirituais.

"Assim como o autor mistura louvor com admoestação, com o fim de não irritar seus ânimos exacerbadamente, ele agora lhes dirige uma advertência sem rodeios, mostrando o que ainda lhes falta, para que sua civilidade não lhes seja uma demonstração de fingida lisonja. 'Tendes apresentado evidência de vosso amor', diz ele, 'através de muitas provas e demonstrações. Ora, resta que vossa fé corresponda ao vosso amor. Tendes ardorosamente labutado para não decairdes em vossas obrigações para com os homens; deveis agora aplicar-vos com não menos ardor ao progresso de vossa fé, como para manifestar diante de Deus que ela é firme e plenamente sólida.' Ao fazer tal declaração, o apóstolo demonstra que há duas partes no cristianismo, que são correspondentes às duas tábuas da lei. Qualquer um que separa uma da outra fica com algo dilacerado e mutilado. Desse fato evidencia-se de que sorte de mestres são aqueles que omitem qualquer menção da fé e simplesmente impõem honestidade e integridade para com os homens. Minha tese é que tal atitude não passa de filosofia pagã que se refugia por trás da máscara de uma justiça superficial, se porventura tal coisa merece o nome de filosofia, porquanto tal justiça dispõe tão mal seus dogmas que rouba a Deus, a quem pertence a preeminência de seus direitos. Portanto, lembremo-nos de que a vida cristã não é completa em todas as suas partes, a menos que direcionemos nossas energias para ambos, a fé e o amor.

Visto que aqueles que professavam a fé cristã estavam sendo confundidos por todo gênero de opiniões, ou eram ainda enredados por muitas formas de superstição, o autor os convida a viverem tão bem alicerçados na certeza da fé que não mais viveriam titubeantes nem mais seriam jogados de um lado para outro, como que suspensos entre os ventos alternativos das dúvidas. Tal advertência se aplica a todos. Como a verdade de Deus é invariável, assim também a fé, que descansa nele, se de fato é genuína, deve ser inabalável e acima de toda e qualquer dúvida. Ela é pleroforia*, ou seja, uma convicção inabalável, pela qual a mente piedosa por si mesma se determina a não pôr em dúvida o que falou Deus, que não pode enganar nem mentir.

O termo 'esperança' é aqui usado no sentido de fé, em razão de sua estreita associação. O apóstolo parece tê-lo usado intencionalmente, visto estar falando de perseverança. À luz desse fato podemos concluir quão longe de ser fé se acha aquele gênero de discernimento geral que é comum a incrédulos e a demônios. Eles também creem que Deus é justo e verdadeiro, mas não extraem qualquer boa esperança de tal crença, visto que não podem experimentar sua graça paternal em Cristo. Devemos, pois, saber que a genuína fé está sempre de braços dados com a esperança."

* Em caracteres gregos no texto original.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Teologia relacional II

Além de todos os absurdos bíblicos e lógicos da heresia relacional, listados pelo pastor Augustus nesse livreto, há um que me chamou a atenção. É psicologicamente compreensível - embora de modo algum justificável - que os teólogos adeptos dessa ideia achem impossível ter uma relação pessoal com um Deus onipotente, onisciente e soberano, e que por isso sejam induzidos a postular que Deus voluntariamente se esvaziou de tal poder a fim de possibilitar uma relação autêntica, que não poderia ocorrer devido à incompatibilidade entre a absoluta soberania divina e a liberdade humana.

Mas, se esse era o propósito único do fantasioso esvaziamento divino, por qual motivo deveria Deus abrir mão de poderes que em nada comprometem nosso livre arbítrio? Um exemplo disso é o domínio sobre as forças da natureza. Não posso imaginar de que maneira o controle divino sobre as tempestades, os furacões e os terremotos perturbaria a liberdade das escolhas humanas. Entretanto, quando acontece um desastre natural qualquer, os teólogos relacionais apressam-se a esclarecer que Deus queria muito tê-lo impedido, mas não pôde e está arrasado por isso, já que, acima de tudo, Deus é amor. E ser amor, segundo esse pessoal, é sinônimo de proporcionar conforto e evitar o sofrimento a qualquer custo.

Sendo assim, o programa teológico relacional está sujeito a uma falha básica. Mesmo que seus pressupostos fossem válidos, nada impediria que Deus, antes de criar o mundo, tivesse tomado a seguinte resolução: "Abrirei mão completamente de minha soberania sobre as decisões dos homens, mas manterei firme controle sobre as forças da natureza inanimada. Esse controle será, inclusive, uma ferramenta muito poderosa para evitar o sofrimento humano, pois assim não haverá risco de catástrofe natural alguma." O que se segue logicamente de tudo isso é que o postulado de que Deus não tem pleno domínio sobre as forças da natureza não é compatível com o motivo alegado para o esvaziamento divino. É apenas uma constatação a posteriori que, por sua vez, não pode ser harmonizada com a interpretação do amor divino sustentada pelos teólogos relacionais.

Adendo: Escrevi as considerações acima no dia 23 de novembro, antes da catástrofe ocorrida no Haiti. Os eventos posteriores tornaram-nas mais atuais do que eu mesmo havia pretendido.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Nem Marx nem Jesus II

Aqui vai meu trecho preferido da resposta de Revel ao comentário de sua amiga Mary McCarthy, que contém tanto assentimentos quanto críticas às concepções defendidas no livro. O comentário e a resposta vieram numa edição posterior do livro, que foi publicado originalmente em 1970. Esse trecho, principalmente em sua parte final, vem ao encontro de minhas próprias impressões ainda inexpressas sobre o terror do esquerdismo diante da prosperidade material do mundo livre. Transcrevo parte do parágrafo precedente também (mas não apenas) para contextualizar melhor o que vem no final. O humor característico do autor também se manifesta aí com clareza.

"Quanto aos esquerdistas europeus (pelo menos aqueles que não desapareceram completamente) e aos esquerdistas franceses ou italianos em particular, seu drama é parecerem-se ainda demais com o partido comunista stalinista que combatem e que os combate. Seus ataques contra o meu livro foram a repetição de estereótipos marxistas de há vinte anos, pois os 'maoístas' franceses de hoje têm exatamente a mesma esclerose que os stalinistas de 1950. Ou então, como os estudantes japoneses, a juventude esquerdista divide-se em vinte ou trinta tendências trotskistas diferentes que, quanto mais trabalham para se destruir mutuamente, mais numerosas se tornam, parecendo dotadas da propriedade de se multiplicarem até ao infinito. Isso explica que, como a própria Mary McCarthy me disse, numerosos estudantes americanos da Nova Esquerda, vindos para a França atraídos pelo estrondo de maio de 68, voltem a partir desiludidos com a esterilidade e a falta de imaginação dos esquerdistas franceses. Peço desculpas por me repetir: a eficácia revolucionária consiste em provocar mudanças efetivas na realidade e não em procurar aí, em vão, a confirmação duma ortodoxia. É verdade que também se pode negar, pura e simplesmente, a existência dessas mudanças quando elas não confirmam a ortodoxia, ou então recusar todo e qualquer progresso sob o pretexto de que, não tendo 'abolido o capitalismo', os progressos constituem uma 'alienação'. Nove vezes em dez, o que se chama alienação é uma reivindicação satisfeita. O operário não tem meios para comprar alguma coisa? É explorado. Tem meios para a comprar? É um alienado. Está mal alojado? É uma vítima do capitalismo. Sua empresa aloja-o gratuitamente? É um 'recuperado pelo sistema'. Seguindo essa dialética marcusiana, a história do movimento operário constitui uma lenta descida aos infernos, já que cada vitória na luta de classes provoca uma escravidão suplementar. Qualquer melhoria na sorte da população operária é uma verdadeira catástrofe, pois ajuda-a a suportar essa sua sorte."

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Teologia relacional

Aparece um dado interessante já na apresentação a essa breve análise da heresia que dá nome ao título: o pastor Augustus menciona alguns teólogos cujas obras serviram de base para a compreensão do livreto, e acrescenta:

"Sou também devedor a Russell Shedd, Luiz Alberto Sayão, Eros Pasquini, Norma Braga e outros autores evangélicos, cujas declarações contrárias à teologia relacional por meio de e-mails, blogs, entrevistas e artigos me forneceram informações e ideias."

Pouco depois, na introdução, o autor menciona quatro razões pelas quais o alcance dessa doutrina no meio evangélico brasileiro foi menor do que poderia ter sido. A segunda razão é particularmente significativa:

"Logo que os defensores da teologia relacional saíram do armário para declarar abertamente suas crenças usando a internet e blogs, foram enfrentados por dezenas de blogueiros conservadores que responderam, comentaram e questionaram as posições colocadas nos blogs relacionais. Travou-se uma intensa disputa teológica na chamada 'blogosfera', com dezenas de novos blogs sendo abertos, tomando partido contra ou a favor da teologia relacional. Após acalorado período de discussão, os teólogos relacionais recuaram e fecharam seus blogs - ou, pelo menos, os mais importantes."

Dos eventos resumidos nesse breve retrospecto histórico eu não acompanhei muita coisa, pois na época (2005) minha vida ainda transcorria de todo alheia à blogosfera. Algum tempo depois, porém, encontrei vestígios desse duelo em dois blogs. Um deles é o de meu amigo Gustavo Nagel, que infelizmente já não contém as postagens sobre esse assunto; seu blog, o Lado "b" da minha mente, morreu em 2008 apenas para ressuscitar poucas semanas depois, mas com uma irreparável perda de memória.

O segundo blog, naturalmente, é o da Norma, mencionada pelo pastor Augustus no livreto. Para relembrar os velhos tempos, portanto, coloco abaixo os links para os posts dela que, de modo direto ou indireto, se relacionaram a essa polêmica.

1. "outro deus"?;
2. Ainda "outro deus" e a tarefa de minha vida;
3. Ordem na casa;
4. Judas e o raciocínio circular gnóstico;
5. A história se repete: outra espiritualidade;
6. Uma pergunta a Ricardo Gondim.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Exposição de Hebreus IV

Fiquei mais de dois meses sem postar nada sobre o comentário de Calvino à Epístola aos Hebreus. Entretanto, ainda tenho uma porção de coisas a postar aqui. Sendo esse o primeiro comentário bíblico de Calvino que me aventuro a ler, começo a constatar uma característica interessante. Há coisas que não são muito bem explicadas, ou mesmo são mencionadas apenas de passagem, por já terem sido expostas com maior rigor e profundidade em outro lugar - sobretudo nas Institutas. Por outro lado, existem passagens que, comentadas de modo apenas parcial ou totalmente ignoradas na obra prima do teólogo, são aqui devidamente analisadas. Tais diferenças se relacionam, é claro, com os propósitos e a estrutura das respectivas obras: enquanto as Institutas têm um enfoque sobretudo sistemático e apologético, os comentários demonstram de maneira mais evidente o aspecto pastoral e o esforço para entrar no espírito do texto estudado. Em resumo, os comentários e as Institutas se complementam maravilhosamente em vários níveis. Começo a desconfiar que quem travar contato com apenas uma dessas partes não poderá ter uma ideia de todo correta sobre a obra teológica do reformador de Genebra. E, pensando bem, lembro-me agora que foi justamente disso - e de várias outras coisas, na verdade - que o pastor Franklin Ferreira acusou Max Weber neste artigo: de formar uma ideia equivocada do pensamento social de Calvino por restringir sua pesquisa às Institutas.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Piper sobre Lewis: por que vale a pena sua leitura

Para quem, como nós, preza pela herança reformada ou simplesmente endossa uma teologia bíblia ortodoxa, Lewis tinha muitos defeitos: para começar, não acreditava na inerrância das Escrituras; entendia que a Reforma deveria ter sido evitada; pensava que poderia haver salvação nas representações imperfeitas de Cristo em outras religiões; explicava a dor humana por meio do livre-arbítrio; não era muito chegado a uma exegese cuidadosa. Essas são algumas das objeções que John Piper levanta sobre Lewis. No entanto, a isso se segue uma emocionante manifestação de gratidão a esse autor, que pode ser resumida em oito lições. Gostei tanto dessas lições que as traduzo aqui para vocês. Quem puder e tiver interesse, leia o texto todo de Piper, em inglês, aqui.
  1. Liberação de falsas dicotomias;
  2. Liberação do esnobismo cronológico;
  3. Despertamento para as maravilhas da realidade;
  4. Os perigos da introspecção;
  5. A incompletude do dever sem o deleite;
  6. O vale doloroso do autoconhecimento:
  7. Histórias são uma delícia, mas não são tudo;
  8. A glória de ser simplesmente humano.
De minha parte, comecei a me libertar das falsas dicotomias com Francis Schaeffer, A morte da razão, que há dez anos iniciou em mim toda uma série de preciosas reflexões sobre os dualismos modernos. O esnobismo cronológico (típico aliás das esquerdas, que vivem de um futuro ideal imaginário e precisam acreditar que hoje estamos melhor que ontem) é algo que nunca cultivei com seriedade. Também nunca fui introspectiva demais (o André poderá falar melhor sobre isso), nem busquei uma vida de deveres sem prazeres. Quanto à dor do autoconhecimento, vivo-a sempre, embora aprenda as minhas lições menos rápido que deveria (e graças a Deus por James Houston, que me tranquilizou quanto à lentidão do crescimento espiritual). Nunca coloquei a ficção acima da realidade, mas tenho a tendência de me refugiar em inconsciências de vez em quando - hoje, Deus tem me ajudado a sair delas antes que me afoguem. Agora, por ser naturalmente dada a um temperamento melancólico, preciso aprender muito, muito, muito sobre a Alegria (que se tornaria o centro das pregações de Piper), o maravilhamento e a glória de ser simplesmente humana, permitindo que Deus, e não eu, seja o centro de minha vida. É por isso que ler Piper me faz tão bem, e é por isso que, apesar das inconsistências teológicas de Lewis, eu o recomendo e reconheço que preciso continuar a lê-lo.