quarta-feira, 28 de abril de 2010

Nem Marx nem Jesus XI

Ainda sobre o oitavo capítulo, publiquei em meu blog mais uma postagem, desta vez sobre a repulsa de Revel ao patriotismo e à identidade cultural das nações. Aproveitei para transcrever o melhor parágrafo do capítulo.

domingo, 25 de abril de 2010

Um mundo com significado II

Em sua tentativa de explicar a complexidade da vida sem o recurso a uma intervenção inteligente de qualquer tipo, os evolucionistas há muito murmuram analogias sobre não sei quantos macacos datilografando a esmo, os quais produziriam uma peça de Shakespeare depois de não sei quanto tempo. Lendo esse livro, fico sabendo agora que na Inglaterra, em 2002, o pesquisador Mike Phillips, da Universidade Plymouth, decidiu testar a afirmação empiricamente, colocando um computador à disposição de meia dúzia de macacos. Faço questão de reproduzir integralmente abaixo a primeira peça teatral composta por primatas; mas não, é claro, sem dar o devido crédito aos autores: Elmo, Gum, Heather, Holly, Mistletoe e Rowan. Farei alguns comentários no final.

"ff vvvvvvvpppsssgggggggggggggggggggggggggggggggggggggggg
ggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggg
ggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggggg
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ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssss"


Sei que a transcrição da peça completa pode ter feito deste o post mais longo da história deste blog, mas não resisto a fazer um comentário adicional sobre outras capacidades artísticas demonstradas pelos seis primatas. Os autores do livro transcreveram duas observações do pesquisador sobre o comportamento dos escritores: num primeiro momento, "a fêmea pegou uma pedra e começou a despedaçar o computador. [...] Outra coisa pela qual se interessaram foi defecar e urinar pelo teclado todo." Quem não é capaz de enxergar nisso a influência de Duchamp? Os seis macacos não só são artistas, mas são artistas de vanguarda. Esse experimento comprova que a sensibilidade artística dos macacos é eminentemente pós-moderna. Ou então, o que dá no mesmo, que a sensibilidade artística dos pós-modernos é eminentemente simiesca.

Adendo: Abstenho-me de fazer uma crítica literária da obra acima transcrita. Mike Phillips já fez isso, tornando-se o primeiro crítico literário dos macacos ao observar, mui argutamente, que "eles apertaram muito a letra S".

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Nem Marx nem Jesus X

O oitavo capítulo, intitulado O terror bimilenarista e o fim da política externa, me impressionou o suficiente para merecer um post no meu outro blog. Ali expressei minhas opiniões fortemente negativas sobre o entusiasmo de Revel quanto a um futuro governo mundial como avanço para a solução dos grandes problemas da humanidade.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Um mundo com significado

Até o momento*, fui pouco além do prólogo desse livro de duzentas e poucas páginas que ganhei de presente. Nada sei sobre seus autores, Benjamin Wiker e Jonathan Witt. Ele se apresenta como antídoto à ideia perniciosa segundo a qual os avanços da ciência tornaram impossível a crença de que a vida humana e a existência em geral têm algum significado. Um assunto já meio batido, talvez, na apologética cristã. Mas há três indícios de que esse livro talvez não venha a meramente repetir o que todo cristão que alguma vez se interessou pelo assunto já sabe. Primeiro, a contra-capa traz entusiasmadas recomendações de dois sujeitos que respeito e admiro, Phillip Johnson e Michael Behe (e também de um tal Gerard Schroeder, de quem nunca ouvi falar). Segundo, o subtítulo promete uma conjunção interessante entre duas áreas tradicionalmente vistas como muito distantes entre si: "como as artes e as ciências revelam o gênio da natureza". E, finalmente, um parágrafo encontrado no primeiro capítulo reforça essa promessa ao descrever e justificar a abordagem adotada:

"[...] procederemos por meio de análise filosófica, literária, matemática e científica. Tal amplo espectro de ferramentas intelectuais é necessário por duas razões. Primeira e principalmente, sendo o universo repleto de significado - tão transbordante de evidências de sua engenhosidade -, são necessárias numerosas disciplinas para captar sua superabundância. Segunda, queremos quebrar o encantamento, uma espécie de cegueira intelectual causada por hábitos arraigados no materialismo dogmático, e essas trevas têm infestado quase todas as disciplinas intelectuais."

De fato, faz tempo que percebi que o hábito de pensar segundo categorias materialistas é imbecilizante. A proposta do livro parece interessante. Vejamos o que dirão as páginas seguintes.

*: Escrevi este post em dezembro. Atualmente, já concluí a leitura do livro.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Nem Marx nem Jesus IX

No capítulo Da primeira à segunda revolução mundial, de apenas quatro páginas, Revel diz três coisas interessantes. A primeira é uma percepção muito correta do erro dos que consideram o totalitarismo soviético como uma deturpação do comunismo primevo que, segundo um velho mito comunista, viveu certa vez no Jardim do Éden, antes da Queda:

"É erro imaginar que o stalinismo foi uma traição ao leninismo. Nem Lênin, se tivesse vivido, nem Trotsky, se tivesse se mantido no poder, teriam agido diferentemente de Stálin: todos os seus textos, todos os seus atos, todos os seus discursos, de 1917 a 1924, constituem a prática e a teoria de uma ditadura completamente stalinista. Eles começaram, aliás, com a dissolução da Assembleia Constituinte, em janeiro de 1918, com o auxílio do exército, a qual nascera de eleições que haviam dado aos bolcheviques apenas um quarto dos votos expressos. A partir desse momento, como Rosa Luxemburgo analisou muito bem em La Révolution Russe (1918), Lênin e Trostky partem do princípio de que são melhores intérpretes do pensamento do povo que o próprio povo. Só o Partido é capaz de 'agrupar, educar e organizar a vanguarda do proletariado e de todas as massas trabalhadoras, vanguarda que é a única a estar em condições de se opor às inevitáveis tergiversações pequeno-burguesas' (Lênin, O Décimo Congresso do Partido, março de 1921); tanto assim que o Partido 'é obrigado a manter sua ditadura, sem levar em consideração oscilações provisórias ou mesmo hesitações momentâneas da classe operária' (Trotsky, ibidem)."

A segunda coisa interessante é que Revel enfim declara que a única revolução que pode servir de modelo, ainda que apenas parcial, para a revolução que ele deseja para o presente é "o complexo de metamorfoses políticas sobrevindas no decorrer da segunda metade do século XVIII na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França".

E a terceira coisa é que Revel advoga como meta primária da revolução presente a instalação de um governo mundial, e termina o capítulo dizendo que "tudo o mais, inclusive a igualdade econômica e o fim das classes sociais, passa por aí". Sua argumentação sobre isso, porém, é desenvolvida no capítulo seguinte, e a comentarei no próximo post.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Saber teologia e conhecer os ídolos

Uma palavra sábia de Michael Horton em A call for a second Reformation [Chamada para uma segunda Reforma]

“Antes de mudar a cultura, precisamos recobrar a pureza da doutrina e da vida, essa pureza que sempre exerceu uma influência transformadora no mundo. Precisamos parar de nos acomodar à cultura que confrontamos e objetivamos transformar. Porém, para fazer isso precisamos não apenas conhecer nossa própria teologia, mas também conhecer os ídolos e compreender os modos com que nós mesmos acabamos tomando a forma do espírito deste século em vez da forma do Espírito de Cristo. Enquanto famílias e igrejas continuarem aprendendo ‘todo o conselho de Deus’, redescobrindo a Lei e o Evangelho em uma frequência de pregações, ensinos e adoração, haverá uma integridade nova nas testemunhas da igreja, diante de um mundo cínico que esqueceu a última vez em que levou a igreja a sério. (…)

Onde quer que haja cristãos no mundo que ainda se importam com a verdade e o impacto dessa verdade em uma cultura de decadência, sempre haverá interesse em teologia, sobretudo na teologia da Reforma protestante.”

Before we can change the culture, we must recover the purity of doctrine and life that has always had a transformative influence in the world. We must stop accommodating to the very culture that we are opposing and attempting to transform, but to do that we must not only know our own theology; we must know the idols and understand the ways in which we ourselves are shaped more by the spirit of the age than by the Spirit of Christ. As families and churches learn the "whole counsel of God" all over again and recover the Law and the Gospel in the diet of preaching, teaching, and worship there will be a fresh integrity to the church's witness before a cynical world that has forgotten the last time it took the church seriously. (…)

Wherever there are Christians in the world who still care about truth and its impact in a culture of decay, there will always be an interest in theology and, in particular, the theology of the Protestant Reformation.

domingo, 11 de abril de 2010

Novo cântico

Não posso dizer que tenho um hino preferido, mas certamente um dos que mais gosto é o hino Amor perene, composto por Guilherme Luís dos Santos Ferreira. Não sei nada sobre o autor além do nome. O hino é o número 88 do hinário que usamos em nossa igreja, o Novo cântico. Gosto da melodia do hino, mas gosto ainda mais de sua letra - que é, por sinal, a única parte que posso disponibilizar aqui. E desta gosto dos aspectos poéticos, mas gosto ainda mais do conteúdo doutrinário que se revela ao longo de suas quatro estrofes de maneira belamente literária. Alguns aspectos merecem destaque. Em primeiro lugar, temos a estrutura trinitária do hino exposta nas três estrofes iniciais, cada uma das quais trata do papel de uma das Pessoas da Trindade na aplicação da graça salvadora ao "eu lírico". A primeira estrofe fala sobre o papel do Pai enquanto autor, não só da criação, que é o aspecto mais evidente à primeira vista, mas também da eleição. A segunda estrofe, naturalmente, trata do papel do Filho como oferta expiatória eficaz pelo pecado. A terceira trata da aplicação da obra redentora de Cristo pelo Espírito Santo, dizendo claramente que é o Espírito quem traz a fé aos nossos corações, e não o contrário. Finalmente, a quarta estrofe trata, de modo geral, da soberania e da imutabilidade de Deus; e, em particular, da perseverança dos santos que daí decorre. O hino todo é atravessado pelo tema do amor divino, manifesto em todas essas formas. É evidente também a profunda e grata alegria do compositor por ser alvo desse amor. E é justamente por compartilhar dessa alegria, graças à misericórdia divina, que posso colocar esse hino na lista dos meus favoritos.

Amavas-me, Senhor, ainda cintilante
não irrompera a luz ao mando criador.
E nem o ardente sol, rompendo no levante,
trouxera à terra e ao mar a força fecundante.
Meu Deus, que amor! Meu Deus, que eterno amor!

Amavas-me, Senhor, também quando, imolado,
por mim sofreu na cruz o meigo Salvador,
o Santo de Israel, o teu Cordeiro amado,
levando sobre si a culpa do pecado.
Meu Deus, que amor! Meu Deus, que antigo amor!

Amavas-me, Senhor, quando atingiu meu peito
o Espírito de luz, o meu Consolador,
e com tesouros mil de teu favor perfeito
trouxe à minha alma a fé em que hoje me deleito.
Meu Deus, que amor! Meu Deus, que antigo amor!

E sempre me amarás, porque jamais inferno
ou mundo poderão ao teu querer se opor;
ao teu decreto, ó Deus; ao teu decreto eterno;
ao teu amor, ó Pai; ao teu amor superno.
Meu Deus, que amor! És sempre e todo amor!

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Nem Marx nem Jesus VIII

Um parágrafo do capítulo A revolução não será no terceiro mundo resume muito bem as razões pelas quais Revel não crê que virá de nós a reformulação do mundo com a qual ele sonha. Seus quatro argumentos levam à conclusão expressa numa única frase no parágrafo anterior: "a lei cruel do subdesenvolvimento impõe que suas revoluções também sejam subdesenvolvidas". É claro que não endosso integralmente as posições do autor sobre o que é ou não desenvolvimento. Mas o que mais me impressiona no trecho abaixo é a acurácia com que Revel descreveu o caráter das revoluções latino-americanas de quase quarenta anos depois. Além disso, o final do trecho traz um interessante testemunho do conservadorismo essencial dos pobres cujos interesses os socialistas afirmam defender.

"Primeiro, uma revolução nos países do terceiro mundo leva como pressuposto que haja um remédio pronto para o subdesenvolvimento econômico, de fabricação própria. Ora, mesmo os países cujos recursos o possibilitassem, não o conseguiriam, em virtude de uma deficiência administrativa e de uma carência de pessoal técnico e gerencial. Além disso, sem tradição democrática, os países do terceiro mundo são, em sua maioria, governados autoritariamente, o que acarreta a sequência inevitável: incompetência - ditadura - corrupção - golpe de Estado - expurgo - ditadura recrudescida - incompetência acentuada - aumento do subdesenvolvimento. Em terceiro lugar, os países do terceiro mundo, quase todos mergulhados culturalmente no passado e tomados da obsessão de redescobrir as próprias raízes, tendem a afundar-se nele cada vez mais e calçar, no máximo possível, o freio que se opõe a qualquer progresso: religião islâmica, organização tribal na África negra, sistema de castas na Índia, etc.. A freagem cultural aumenta acentuadamente a dificuldade de se lutar contra o excesso de natalidade, ficando os índices de crescimento demográfico acima dos de crescimento econômico. Quarto ponto: o nacionalismo tira-lhes o espírito crítico e leva-os a atribuir seus atrasos a conspirações. Qualquer guerra de libertação ou de resistência centuplica, com razão, o nacionalismo; uma vez conquistada a independência, porém, esse nacionalismo leva à xenofobia e ao racismo, transforma-se numa barreira contra o desenvolvimento e acaba eventualmente por oferecer compensações militares pelos fracassos econômicos, o que vem agravá-los. Nesses países, aliás, um chefe revolucionário tem pela frente uma manobra delicada, pois tem de apelar para o nacionalismo e despertar os costumes tradicionais para sacudir as massas. O Diário de Che Guevara na Bolívia ressalta o quanto as massas campesinas nas zonas de analfabetismo e miséria são indiferentes a palavras de ordem puramente políticas e sociais. Erigir depois, porém, o nacionalismo em revolução autêntica é façanha só raramente alcançada até hoje e, de qualquer forma, jamais de maneira duradoura. Infelizmente, não basta batizar de socialismo esse nacionalismo para torná-lo construtivo."

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Exposição de Hebreus XII

"Homens dos quais o mundo não era digno..." (Hebreus 11.38)

O capítulo 11 recebeu de Calvino um comentário mais extenso que qualquer outro dessa epístola. E esse capítulo dos comentários parece-me o melhor de todos. Tanto que não resisto à tentação de transcrever abaixo mais um belo trecho, destinado a nos fortalecer, consolar e animar em meio à dura jornada por este mundo. Essa tentação se torna ainda mais irresistível pelo fato de que o trecho bíblico comentado é um em que sempre discerni uma beleza particularmente pungente. Com isso, encerro meus posts sobre essa magnífica obra.

"Visto que os santos profetas vagaram errantes entre bestas selvagens, poderia parecer que eram indignos de receber o sustento da terra. Como é possível que não tenham encontrado um lugar entre os homens? O apóstolo inverte essa posição e diz que o mundo é que não era digno deles. Pois aonde quer que os servos de Deus vão, levam consigo sua bênção como fragrância de odorífero incenso. Foi assim que a casa de Potifar recebeu a bênção divina por causa de José, e Sodoma teria sido salva caso se encontrassem nela dez justos. Ainda que o mundo rejeite os servos de Deus como se fossem lixo, o fato de não poder aturá-los deve ser levado em conta como seu castigo, porquanto, juntamente com eles, acompanha alguma bênção divina. Sempre que os justos são afastados de nosso meio, tomemos tal fato como um mau presságio contra nós, visto que somos considerados indignos de sua companhia, para que não pereçam juntamente conosco.

Ao mesmo tempo, os justos têm amplas razões para consolar-se, ainda que o mundo os rejeite, ao perceberem que o mesmo aconteceu aos profetas, os quais encontraram mais mercê entre as bestas selvagens que entre os próprios seres humanos. Foi com esse pensamento que Hilário se reconfortou ao ver a Igreja ocupada por tiranos com mãos sujas de sangue, os quais se utilizaram do imperador romano como verdugo. Naquele tempo, reafirmo eu, aquele santo homem lembrou-se do que disse o apóstolo aqui sobre os profetas. 'Montes e bosques', disse ele, 'calabouços e prisões são para mim mais seguros que o esplendor dos maiores templos, pois quando os profetas os habitavam, ou eram neles sepultados, ainda profetizavam pelo Espírito de Deus'. Devemos, pois, encher-nos de coragem para menosprezarmos o mundo com bravura; e, se ele nos rejeita, saibamos que o nosso sucesso vem de um fatal dilúvio, e que Deus toma cuidado de nossa salvação para que não chafurdemos nessa mesma destruição."

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Nem Marx nem Jesus VII

Certas considerações tecidas por Revel no capítulo intitulado França: um caso de revolução impossível me fizeram notar que o autor pensava da esquerda francesa dos anos 60 mais ou menos o mesmo que muitos conservadores pensam da direita brasileira de hoje: um bando de imbecis que não sabem lutar pelo poder político, e portanto constantemente entregam-no de bandeja nas mãos de adversários incompetentes no que diz respeito ao benefício da nação, mas muito espertos quando se trata de conquistar e manter o poder. Parece-me claro que há um elemento de pura retórica nisso: pinta-se um inimigo monstruosamente onipotente para levar os possíveis aliados a se sentirem envergonhados e assustados, fazendo com que levantem da cama seus respectivos traseiros e façam alguma coisa.

É nesse contexto algo duvidoso que Revel fornece os pensamentos abaixo, que são muito reveladores da mentalidade predominante na esquerda. O assunto do momento são certas picuinhas eleitorais francesas das quais não tenho grande conhecimento ou interesse. Mas, como acabo de dizer, a validade do diagnóstico fornecido se estende para muito além da luta imediata pelo poder, penetrando até o âmago do sonho socialista.

"É surpreendente como a maioria dos comentaristas de esquerda parece não fazer distinção alguma entre soluções que têm alguma possibilidade de se concretizar e as que não têm nenhuma. [...] Política é saber reagir a uma situação real, e não colocar lado a lado, em pé de igualdade, soluções viáveis e desejos inviáveis. Se lhe pedem para escolher entre massas e batatas, avisando que não consta mais nada do cardápio, você não responde dizendo que prefere caviar. A pergunta é 'massas ou batatas', nada mais. Pode-se sonhar com circunstâncias em que a mercadoria oferecida fosse mais atraente, mas o sonho não toma o lugar de uma ação que corresponda à realidade dada. Agir é decidir em função da realidade e não conforme possibilidades inexistentes. Sem dúvida, a realidade às vezes só deixa lugar para um entusiasmo medíocre, mas é precisamente diante dessa mediocridade que é preciso, no momento dado, saber tomar posição. [...] Porque, em política, decidir-se em função ou pelo que não tem possibilidade alguma de acontecer é nada decidir. Em outras palavras, uma solução política realizável apresenta sempre inconvenientes. Afastada sob tal pretexto, não sobrará mais nenhuma."