domingo, 25 de setembro de 2011

A soberania banida V

O título do quarto capítulo é Autonomismo apóstata: a Queda e a teoria autonomista. A ideia geral aqui delineada é deveras interessante. Wright busca identificar no relato bíblico da Queda o germe dos mais diversos pecados humanos. Primeiro, a distorção das palavras de Deus, tanto pelo acréscimo quanto pela supressão, ambos encontrados na resposta da mulher à pergunta da serpente. Depois, o racionalismo, pois a negação consistente da sentença divina só poderia se basear num conhecimento exaustivo da natureza das coisas. Em seguida, o irracionalismo, decorrente da convicção de que Deus não possui absoluto controle sobre sua criação, o que equivale a torná-la indeterminada, abrindo-se então um campo indefinido de possibilidades. A tensão entre racionalismo e irracionalismo se refletiria a partir de então no célebre "problema do um e dos muitos", que o coração pecador do homem tenderia sempre a resolver em alguma teoria aparentada à "grande cadeia do ser", postulando uma hierarquia que abarca todas as coisas, descendo continuamente do Absoluto até as mais rudimentares formas de existência. Por trás de tudo isso jaz o desejo pela autonomia em relação a Deus e sua Lei.

As conexões feitas por Wright entre os diversos elementos de sua interpretação do Gênesis estão longe de ser claras. Na verdade, a exposição é bastante superficial, e vale mais pelas intuições que pelo rigor. Não posso sequer concordar com seu uso dos termos "racionalismo" e "irracionalismo", que acabam remetendo ao seu determinismo. Apesar de tudo isso, a ideia do capítulo é bem interessante, e creio que há várias verdades importantes aí embutidas. Em especial, também acredito que há uma "religião do homem" para a qual tende naturalmente o instinto religioso não regenerado. Além disso, achei interessante o seguinte trecho:

"É essa cosmovisão pecaminosa que Paulo descreveu como o grande problema humano em Romanos 1, que ele confrontou com os sofismas de Atenas e aos quais ele dá o evangelho de Cristo como uma resposta em 1 Coríntios 1 e 2. Os reinos de Israel e Judá enfrentaram isso nas idolatrias antigas das tribos cananeias. Paulo enfrentou isso em seu próprio tempo na filosofia cultural do helenismo. Lutero encontrou-a na hierarquia da Igreja Católica Romana. Missionários a enfrentam no hinduísmo. Os evangélicos de hoje encontram essa cosmovisão nas novelas fantasiosas de Charles Williams e C. S. Lewis e nas visões ocultistas da Nova Era, e mesmo nas defesas hierárquicas da subordinação das mulheres nas igrejas mais conservadoras."

Em minha opinião, Wright esteve a um passo de detectar um problema muito real em Lewis, que é essa simpatia excessiva pelo modo pagão de pensar - erro que ele adquiriu em parte pela influência de Williams, segundo Colin Duriez (e em parte porque sua cosmovisão nunca deixou de ser meio católica).

Não estou bem certo de que o hierarquismo embutido na "grande cadeia do ser" seja o problema fundamental da cosmovisão humana. Isso não defendido de modo claro e convincente no texto. Mas essas são ideias interessantes que vale a pena ter em mente em investigações futuras.

domingo, 18 de setembro de 2011

O grande jogo XVII

No capítulo 11, intitulado Lula, a nação como família, há comentários bastante interessantes sobre a mentalidade política do ex-presidente, especialmente no artigo A ética de Lula e a nossa. Magnoli resume bem essa visão nas seguintes palavras:

"Lula encarna a tradição do patronato político brasileiro. Vezes sem conta, o presidente definiu a nação pela metáfora da família, na qual ele desempenha o papel de pai provedor, governando com o coração e zelando por todos os filhos, sobretudo os mais fracos. Governar é distribuir privilégios seletivamente: eis o conceito arcaico que sempre emanou do pensamento do Lula-presidente."

Entretanto, Magnoli não nota a profunda semelhança entre a visão que Lula faz de si mesmo e a que a esquerda em geral faz da própria função do Estado. O princípio é o mesmo, embora, sem dúvida, a incultura do ex-presidente o tenha levado a expressá-lo de maneira bastante óbvia e grotesca. Mas Magnoli não percebe isso, e faz uso de vários argumentos, desde pormenores econômicos até bravatas de campanha eleitoral, para provar que o governo Lula não foi de esquerda, que existe um vácuo ideológico no PT, que do socialismo petista só restam "o nome, os símbolos e a memória histórica". O autor chega mesmo a dizer que FHC conseguiu a "conversão ideológica do adversário", como se o próprio FHC não fosse um esquerdista, em primeiro lugar. E acha também que as visões de mundo do PT e do MST são antagônicas.

Magnoli não sabe distinguir entre lentidão revolucionária imposta pelas circunstâncias, concessões puramente estratégicas, e "valores" ideológicos verdadeiros, que resultam em ações concretas rumo a um alvo preestabelecido. As atitudes verdadeiramente comunistas do PT se manifestam de muitas formas, desde as alianças e lealdades internacionais (oficiais ou não, do governo ou do partido) até o auxílio ao próprio MST, que tem se manifestado até nos livros escolares do MEC. O geógrafo não percebe a magnitude do triunfo da ideologia esquerdista no cenário político brasileiro, e é por isso mesmo que lhe falta o senso das proporções quando se trata de classificar ideologicamente as ações de um partido.

No entanto, no que diz respeito ao MST, algumas de suas percepções são interessantes e me parecem corretas. Magnoli chega a constatar que a reforma agrária pretendida pelo MST não tem nada a ver com terras improdutivas ou pobreza dos camponeses: "não é uma política social compensatória, mas a bandeira de uma revolução". Contudo, ele vê nisso um conflito de interesses entre MST e PT que é, na melhor das hipóteses, insignificante. Pois, se o PT não está interessado em fazer uma reforma agrária verdadeira (se é que isso existe), isso não quer dizer que não haja interesses ainda mais importantes em comum.

domingo, 11 de setembro de 2011

A soberania banida IV

Depois de um breve interlúdio (aqui e aqui), para responder às críticas do Dr. Alan Myatt, aqui vai o restante do que tenho a dizer sobre o segundo capítulo da obra de Wright.