segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A rejeição do racionalismo por Gordon H. Clark

Hoje tomei conhecimento do texto A rejeição do racionalismo por Gordon H. Clark, de Phil Fernandes, publicado no blog do Monergismo em maio deste ano. Duas pessoas pediram minha opinião sobre o texto: minha amada esposa Norma e meu querido amigo Leonardo Galdino. Perguntaram-me se o conteúdo desse texto é válido como contestação ao racionalismo de Clark. Respondo que não, e dou minhas razões nos parágrafos que se seguem. Mas advirto que não farei uma apreciação completa do texto; em particular, não tratarei dos equívocos cometidos na exposição dos filósofos citados, embora haja alguns. Não sei se esses equívocos são do autor do breve artigo ou do próprio Clark; de qualquer modo, eles não são relevantes para o propósito que tenho em mente.

Os argumentos levantados no artigo contra a tese do "Clark racionalista" dividem-se em apenas duas categorias. A primeira é uma listagem de críticas feitas por Clark a diversos racionalistas, puros ou impuros: Agostinho, Anselmo, Descartes e Spinoza. Nenhuma objeção de Clark a teses específicas de algum desses filósofos é apresentada. É-nos dito apenas que Clark os criticou. Seja qual for o conteúdo de suas críticas (que eu conheço em parte), o fato é que essa primeira categoria não tem valor enquanto objeção à tese em questão, pois os diversos filósofos racionalistas também fizeram críticas uns aos outros. Portanto, criticar racionalistas não é motivo sufuciente para que alguém possa se esquivar de ser considerado racionalista.

A segunda categoria, que aparece apenas no último parágrafo, traz apenas duas objeções levantadas por Clark ao racionalismo enquanto tal, à parte de suas manifestações específicas em um ou outro filósofo. A primeira é que as conclusões dos diversos filósofos racionalistas contradizem-se mutuamente. Agostinho, Anselmo, Descartes e Spinoza, por exemplo, produziram sistemas racionalistas conflitantes entre si. Ora, isso está longe de ser sequer uma objeção ao racionalismo, e muito mais longe de ser uma razão para que alguém não seja considerado racionalista. O fato de eu reconhecer que existem várias vertentes teológicas cristãs, por exemplo, não basta para me desqualificar como cristão, e tampouco constitui crítica ao cristianismo. É apenas o reconhecimento de um fato. Dá-se o mesmo com o racionalismo, ou com qualquer outro "ismo". Além disso, se decidirmos considerar Clark um racionalista, essas afirmações continuam sendo verdadeiras: nesse caso, diremos apenas que Agostinho, Anselmo, Descartes, Spinoza e Clark produziram sistemas racionalistas conflitantes entre si.

A segunda objeção é, nas palavras do próprio Clark, que "o racionalismo não produz princípios primeiros a partir de algo mais: os princípios primeiros são inatos". Isso é inexato, em primeiro lugar, porque as ideias inatas dos racionalistas do século XVII eram inatas à mente, não à própria razão, que pode ser uma propriedade dos seres ou um atributo da mente, mas não pode ser confundida com a própria mente. Portanto, para aqueles racionalistas, a razão tinha algo exterior a si mesma sobre que atuar. Clark discorda deles, e atribui esse papel somente às Escrituras. Mas isso só muda o lugar de onde se retiram as premissas, não havendo diferença estrutural alguma quanto ao papel, modo de funcionamento e poder de alcance potencial da razão. A própria definição com que o artigo começa está errada: "Racionalismo é a tentativa de encontrar a verdade por meio da razão somente". Isso, a rigor, nunca existiu. A razão sempre teve, nos diversos sistemas racionalistas, algum material externo a partir do qual trabalhar.

Além disso, não devemos cair no erro de entender o racionalismo em um sentido demasiado estrito, como a se referir apenas a racionalistas do tipo antiempirista do século XVII. Felizmente, o autor do artigo não caiu nesse erro, embora sua descrição se aplique melhor a essa categoria de racionalistas que a qualquer outra, e embora Clark fosse antiempirista convicto (e na maior parte das vezes com razão, segundo creio). Os atuais materialistas de tipo cientificista, que professam um discurso incoerentemente empirista, são também herdeiros do racionalismo, e com frequência portam-se como eles, chegando inclusive a designarem-se por esse nome algumas vezes. O racionalismo é mais amplo que tudo isso, envolvendo uma atitude e um sentimento diante da razão, uma certa confiança em seu poder "redentor" e em sua onipotência. Racionalistas têm um cheiro característico, que aprendi a identificar por já ter sido um (não sei com que grau de pureza), e por tê-lo sentido diariamente ao longo dos oito anos em que frequentei departamentos de física. Quando digo que Clark foi um racionalista, é porque senti esse cheiro até em seus PDFs. Só não me peçam para descrevê-lo, pois daria muito trabalho. O melhor que já consegui fazer nesse sentido apareceu nesta quarta (e última) parte de minha crítica a um artigo de Gary Crampton. Poderei tentar algo mais completo em outra oportunidade, quando estiver devidamente inspirado. Quem já tentou descrever perfumes com palavras sabe o trabalho que dá.

2 comentários:

  1. André,

    seu próximo passo, então, será inspirar-se... e que isso se dê o mais rápido possível! rs! Pensei que você fosse comentar uma frase do Clark que apareceu no texto: “Deus, por definição, é o ser que possui todas as perfeições; a existência é uma perfeição; portanto, Deus existe”. Não achas que, de certo modo, isso é um tiro no pé, dada a rejeição de Clark ao chamado "evidencialismo"?

    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. Leonardo, na verdade o texto não deixa isso explícito, mas tenho a impressão de que Clark estava, com essa frase, apenas descrevendo a posição de Descartes, sem endossá-la. Talvez o autor do artigo esperasse que o leitor percebesse de imediato o contraste entre as declarações entre aspas e as posições do próprio Clark. Faltou clareza no texto, que precisava ser melhor desenvolvido.

    Abraços!

    ResponderExcluir