terça-feira, 18 de outubro de 2011

O grande jogo XVIII

O penúltimo capítulo, Preto no branco, trata de questões raciais, e nele se encontram lado a lado verdades profundas e besteiras igualmente profundas, talvez como em nenhuma outra parte do livro. Magnoli faz bem em apontar para a queda na prosperidade dos negros americanos desde a implementação das ações afirmativas, mas atribui as cotas a uma "reação conservadora" com base no fato de ter sido financiada por instituições como a Fundação Ford. A estrutura do argumento é muito simples: se é uma medida não favorece os oprimidos e tem gente rica apoiando, só pode ser coisa da direita. Ocorre, porém, que essa maneira tipicamente esquerdista de encarar a realidade não corresponde aos fatos. Se correspondesse, não haveria explicação para o amplo apoio de bilionários americanos e europeus a eventos como o Fórum Social Mundial, para dar só um exemplo. Nos EUA, todo mundo sabe que os ricaços todos favorecem a esquerda e geralmente apóiam o candidato mais intervencionista, e que quem se opõe às ações afirmativas são os conservadores. Mas Magnoli acha que os defensores das cotas são não só direitistas, mas "ultraliberais", como se criar leis adicionais com base na cor da pele das pessoas fosse um perfeito exemplo de Estado mínimo. Ele também acha que Bush é "ultraliberal", como se o ex-presidente americano não tivesse promovido inchaço estatal algum. Não é de admirar que, diante de tamanha confusão, Magnoli veja como "paradoxal" a adesão do PT às cotas raciais. Ele simplesmente não entende nada do que está acontecendo.

Com base em sua confusão, Magnoli teoriza, com a profundidade de um panfleto eleitoreiro, que "o pensamento ultraliberal enxerga a sociedade como conjunto de consumidores", enquanto "o pensamento de esquerda enxerga a sociedade como conjunto de cidadãos", de modo que a ênfase do primeiro está na igualdade econômica e a do segundo está na igualdade política. Basta dizer que, segundo essa definição, Marx seria de direita e todos os conservadores que conheço seriam de esquerda. É certo que Magnoli não é um marxista, estando mais próximo de ser um herdeiro direto da Revolução Francesa, mas isso não lhe dá o direito de redefinir os termos de maneira contrária à amplamente utilizada só para angariar à esquerda os méritos de seus adversários. Além do mais, a aplicação que ele faz desses conceitos à questão específica das ações afirmativas demonstra simples ignorância histórica. Afinal, não foi Marcuse quem propôs a ação de todas as categorias de excluídos (e não só os pobres) em prol da revolução socialista?

Magnoli diz muitas outras bobagens que não me animo sequer a mencionar, mas o capítulo tem suas qualidades. Por exemplo, ele denuncia de modo mui apropriado que o recente endeusamento de Zumbi dos Palmares está ligado ao desprezo pelos movimentos abolicionistas do século XIX, já que a Abolição em si é interpretada como mera artimanha capitalista. Diz Magnoli que adotar essa versão revisada da história é "obliterar os nomes das sociedades abolicionistas, com seus jornais e heróicos estratagemas que permitiram fugas de milhares de escravos das fazendas. Os revisionistas passaram a borracha na saudação de Raul Pompéia aos escravos rebelados [...]. Eles condenam ao limbo os jangadeiros ceareneses que se recusaram a transportar aos navios os escravos vendidos para outras províncias, os tipógrafos que não imprimiram panfletos antiabolicionistas, os ferroviários que escondiam os negros fugidos em vagões ou estações de trem. A Abolição foi uma luta popular moderna, compartilhada por brasileiros de todos os tons de pele." Só é uma pena que o leitor não tenha sido informado de que Zumbi não foi herói nenhum, e sim mais um dono de escravos, como bem demonstram as pesquisas históricas mais recentes.

Magnoli deve ser um dos mais ferrenhos inimigos das ações afirmativas no Brasil, infelizmente. Pois, com essa ideologia política confusa, ele não tem muita chance de obter sucesso em suas denúncias.

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