Kaspar Hauser (cuja história inspirou o romance de Jacob Wassermann, publicado pela Topbooks) é um rapaz de quinze anos encontrado em Nuremberg. Seu nível de linguagem e desenvolvimento físico e cognitivo comparava-se ao de um menino de quatro anos. Especula-se que, filho de um nobre, foi vítima de uma conspiração que o privou de ser educado convenientemente. Passa anos em uma caverna, sendo alimentado por pão e água, até que é solto na cidade, onde é recebido por algumas famílias, de casa em casa dos quinze aos dezoito anos, sempre atormentado por sonhos e mergulhado em um indescritível sofrimento por não conhecer sua origem.
O que mais me impressionou, no livro, foi a relação entre Kaspar e seu último preceptor, o prof. Quandt. Apesar de se dispor a abrigar o rapaz, Quandt não acreditava em sua inocência e, como muitos na região, suspeitava de que o protegido fingia o tempo todo para receber casa e cuidados. O trecho adaptado abaixo mostra o quanto Quandt se prestava a malentendidos de toda ordem por estar convicto da culpa do rapaz. Quase enlouquecido, ele pressiona Kaspar para que fale de seu passado.
- Suponha que você está em presença de Deus e que Ele pergunte: De onde vem você? Onde nasceu? Quem lhe deu um nome falso? Como se chamava no berço? Quem lhe ensinou a enganar os homens?
Kaspar ergue-se pesadamente e, com os lábios trêmulos, diz:
— Eu responderia, se o senhor me fizesse semelhantes perguntas. O senhor, porém, não é Deus.
Quandt recua um passo.
— Blasfemador! Vá embora, monstro de impiedade! Não suje por mais tempo o ar que eu respiro!
Descubro, pensativa, que o livro é profundamente revelador de nossa humanidade. De um lado, somos levados a nos identificar com Kaspar nas várias situações em que duvidam injustamente de nossas palavras, de nosso comportamento, de nosso caráter. De outro, somos levados a nos identificar com Quandt em nossas mesquinhas injustiças — em relação aos homens, mas principalmente em relação a Deus, a quem, pressionados pela dor, atribuímos, conscientemente ou não, os defeitos humanos do esquecimento, da displicência, da falta de amor.
É quando é necessária a dupla oração: Deus, perdoa-nos por odiar as pessoas que não nos compreendem ou que estão doentes demais para nos ver como somos. Deus, perdoa-nos por atribuir toda sorte de falsidades ao Senhor quando nos sentimos fracos e confusos diante de um acontecimento terrível.
Livra-nos da mentira, Deus, em todas as suas formas. Amém.
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Essa tradução do Kasper Hauser é uma antiga, da década de 40, que a Topbooks resolvera reeditar - e que ruim tradução! Não digo das infidelidades ao original alemão, pois de alemão não sei vírgula, mas do português medonho. Ou eu estaria exagerando?
ResponderExcluirAh, Luiz, eu nem queria tocar nesse assunto (chato falar de uma editora como a Topbooks), mas você tem toda razão! O livro está cheio de erros absurdos de ortografia, concordância e incongruências vocabulares. Um verdadeiro crime com o romance! Eu faria até de graça um copidesque pra eles... Brincadeira, hehe. Não sei alemão, mas já daria para melhorar bastante coisa.
ResponderExcluirVocê conhece uma tradução melhor?
Abraços!
Sempre fico com medo de que meu juízo sobre os pecados de outras pessoas seja mero resultado de uma percepção deficiente causada pelos meus próprios. Já vi isso acontecer muitas vezes. Abster-se de cometê-las é tão difícil quanto de ressentir-se indevidamente quando somos vítimas disso.
ResponderExcluirNorma, é sempre muito bom ver um novo post seu por aqui. E é melhor ainda quando se trata de um texto tão belo e importante como esse. :-)