terça-feira, 23 de março de 2010

Exposição de Hebreus X

"Ora, a fé é a substância das coisas que se esperam, a evidência de fatos que não se veem." (Hebreus 11.1)

A tradução que transcrevo desse famoso versículo é do próprio Calvino. Ela se opõe a Lutero, a João Ferreira de Almeida e a grande parte dos teólogos católicos do século XX, todos os quais usam os termos "certeza" e "convicção" no lugar de "substância" e "evidência", respectivamente, e concorda com Jerônimo e vários patrísticos e escolásticos, embora não necessariamente concordando com eles quanto ao sentido dessas palavras. Tais peculiaridades são relevantes para a compreensão adequada do trecho abaixo, em que o reformador de Genebra, partindo de considerações sobre essas duas palavras, tece alguns comentários sobre a relação entre a fé e a esperança, que o autor da epístola busca ressaltar ao longo de todo o capítulo. (Convém acrescentar que Calvino de modo algum considerava exaustiva a definição de "fé" dada nesse versículo.)

"Ele chama a fé de 'a substância das coisas que se esperam'. É de nossa experiência que o que se espera não se encontra ainda em nossas mãos, e sim o que está ainda escondido de nós ou, pelo menos, que seu usufruto é adiado para outro tempo. O apóstolo está dizendo a mesma coisa que Paulo em Romanos 8.24, onde, após dizer que o que se espera não se vê, chega à conclusão de que se deve esperá-lo com paciência. Daí nosso apóstolo nos ensinar que não devemos exercer fé em Deus com base nas coisas presentes, e sim com base na expectativa de coisas ainda vindouras. Há nessa aparente contradição um toque de atrativa beleza. Diz que a fé é a substância, ou seja, o arrimo ou fundamento sobre o qual firmamos nossos pés. Mas apoio do quê? Das coisas ausentes, as quais se encontram tão longe de estar sob nossos pés que excedem infinitamente o poder de nossa compreensão. A mesma ideia percorre a segunda cláusula, onde ele chama a fé de 'a evidência', que é a demonstração das coisas não visualizadas. Uma demonstração provoca o aparecimento das coisas, e comumente se refere somente ao que se acha sujeito aos nossos sentidos. Essas duas coisas aparentemente contradizem uma à outra, e no entanto estão em perfeita harmonia, quando nossa preocupação é a fé. O Espírito de Deus nos mostra as coisas ocultas, o conhecimento das quais não pode atingir nossos sentidos. A vida eterna nos é prometida; todavia, ela é prometida aos mortos. Somos informados sobre a ressurreição dos bem-aventurados; mas, entrementes, vivemos envolvidos em corrupção. Somos informados de que somos justos; todavia, o pecado habita em nós. Ouvimos que somos bem-aventurados; mas, entrementes, somos subjugados por inaudita miséria. É-nos prometida abundância de tudo quanto é bom; mas vivemos frequentemente famintos e sedentos. Deus proclama que virá nos buscar imediatamente; mas parece que é surdo ao nosso clamor. O que seria de nós, se não fôssemos sustentados por nossa esperança? E quantos de nossos pensamentos não emergem acima da escuridão e pairam acima do mundo, sustentados pela luz da Palavra de Deus e de seu Espírito? Portanto, a fé é com justa razão chamada de substância das coisas que são ainda objetos de esperança e de evidência das coisas ainda ocultas. Agostinho às vezes intercambia 'evidência' e 'convicção', do que não discordo, porque fielmente expressa a intenção do apóstolo. Prefiro o substantivo 'demonstração' ou 'evidência', porque é menos forçado."

3 comentários:

  1. "Certeza" e "convicção" são acontecimentos interiores, subjetivos. Podemos ter certeza e estar convictos de algo que não existe ou que está errado. Já "substância" e "evidência" são dados concretos nos quais podemos colocar nossos pés, mesmo sem vê-los. :-)

    Gostei!

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  2. Então entra aqui a minha pergunta: A fé pelo qual denotamos tê-la deve ser abstrata ou concreta, ou ambas? Parece meio boba a minha pergunta a vocês, mas a mim não o é.

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  3. Olá, Mário!

    Desculpe, mas acho que não entendi sua pergunta. Pode se delongar um pouco mais? :)

    Abraços!

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