terça-feira, 30 de março de 2010

The Great Conversation

Quem consegue escapar dos sufocantes círculos fechados de leitura na academia e entrar em contato com obras de autores conservadores verifica (no meu caso, com alívio) sua transição à vontade por vários campos do conhecimento. Gente como Roger Scruton e Russell Kirk, por exemplo, escreve sobre política, filosofia, literatura, de modo igualmente magistral e interrelacionado. Quero ser assim!

E por que ninguém mais é assim? Porque não se usa mais, em nossos dias, a educação liberal, que não é cronocêntrica (como manda a "pós-modernidade"), mas se dedica aos grandes temas da humanidade, expostos nos grandes livros da tradição ocidental. Esse trecho de The Great Conversation afronta a educação para avestruzes que é a tendência hoje, mostrando como a educação liberal pode ser, de fato, libertadora:

A substância de uma educação liberal parece consistir no reconhecimento de problemas básicos,  no conhecimento de distinções e interrelações no assunto e na compreensão de ideias. [...] A educação liberal procura esclarecer os problemas básicos e entender o modo pelo qual um problema se relaciona ao outro. [...] O homem liberalmente educado compreende as ideias que são relevantes para os campos básicos do assunto. [...] Ele tem uma mente que pode operar bem em todos os campos. Pode ser um especialista em seu próprio campo, mas é capaz de entender todas as coisas importantes que são ditas em qualquer campo, e é capaz de ver e usar a luz que elas lançam sobre seu próprio campo.

Do original em inglês:


The substance of liberal education appears to consist in the recognition of basic problems, in knowledge of distinctions and interrelations in subject matter, and in the comprehension of ideas. [...] Liberal education seeks to clarify the basic problems and to understand the way in which one problem bears upon another. [...] The liberally educated man comprehends the ideas that are relevant to the basic fields of subject matter. [...] He has a mind that can operate well in all fields. He may be a specialist in his own field. But he can understand anything important that is said in any field and can see and use the light that it sheds upon his own.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Exposição de Hebreus XI

"Pela fé Moisés, sendo já homem, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, escolhendo antes ser maltratado com o povo de Deus do que por algum tempo usufruir dos prazeres do pecado, considerando o opróbrio de Cristo como maiores riquezas que os tesouros do Egito." (Hebreus 11.24-26)

O trecho abaixo, que contém parte dos comentários de Calvino sobre a porção destacada acima, traz elementos importantes sobre a concepção do reformador acerca do correto usufruto dos bens deste mundo. Parece-me claro que Calvino não era um puritano, no sentido pejorativo que essa palavra veio a adquirir mesmo em alguns círculos cristãos. (Até C. S. Lewis, que estava a anos-luz de ser um calvinista, enxergou a impropriedade desse estereótipo que prevalecia na Inglaterra já em seu tempo, e que é bem visível, por exemplo, em Chesterton.) O ensino de Calvino sobre esse tema merece ser mais bem conhecido, e dou minha pequena contribuição para isso com esta postagem.

"Devemos revestir-nos de prudência ao considerar esse modo de expressão, porque ele nos revela que tudo quanto não podemos obter sem que Deus se ofenda deve ser descartado como veneno letal. A todas as seduções do mundo, as quais nos afastam de nossa inclinação para Deus, o apóstolo chama de 'prazeres do pecado'. E esses prazeres não são contados entre as bênçãos da vida terrena, as quais podemos desfrutar com uma consciência pura e com a permissão divina. Devemos ter sempre em mente distinguir aquilo que Deus nos permite. Algumas coisas são em si mesmas lícitas, mas seu uso nos é proibido em virtude das circunstâncias de tempo, lugar ou outras coisas. Ao usufruirmos de todas as bênçãos desta presente vida, devemos ter sempre em mente o fato de que elas nos são auxílios para seguirmos a Deus, e não obstáculos."

sexta-feira, 26 de março de 2010

Nem Marx nem Jesus VI

Eis o trecho final do capítulo, que trata do fracasso total da ideologia comunista e seus regimes quanto à tentativa de implantar o paraíso terrestre. As palavras iniciais também dizem algo importante sobre o lento avanço de formas mais moderadas de socialismo nas democracias ocidentais:

"Há cinquenta anos que todos os caminhos vêm levando a doses mais ou menos fortes de socialismo, exceto o caminho socialista. Se a segunda revolução mundial deve consistir em criar igualdade real entre os homens e em inventar instrumentos políticos, de sorte que todos esses homens iguais possam ser responsáveis pelas decisões que envolvem as grandes orientações de seu destino, é claro que a concentração de todos os poderes - político, econômico, militar, tecnológico, judiciário, constitucional, cultural, informativo - nas mãos de uma oligarquia - e em alguns casos (Stálin, Tito, Castro) até de uma monarquia - será o pior dos meios para levar a uma tal revolução. Com efeito, num tal contexto, as qualidades necessárias à conquista, ainda que heróica, e à manutenção, ainda que precária, do poder não têm relação alguma com as qualidades indispensáveis à solução dos problemas levantados por uma sociedade moderna; nasce daí uma situação em que a conservação do poder é cada vez mais garantida, enquanto que as soluções que a sociedade espera desse poder tornam-se cada vez menos frequentes e cada vez mais difíceis de se encontrar. A autoridade sobe e a competência cai. Como crítica alguma pode diminuir o ritmo de ascensão da primeira e de queda da segunda, descamba-se para uma sociedade cada vez mais dominada e cada vez menos governada.

Então, não importa mais que este sistema social seja, no papel, melhor que aquele. Se você pega um homem de quem cortou os braços e as pernas, pode proclamá-lo indiferentemente jogador de futebol ou de rugby. Você poderá até, dissertando sobre ele, proclamar-se cronista esportivo. É preciso confessar que, na hora atual, os estádios políticos do planeta estão cheios de atletas desse tipo, e as tribunas, cheias de cronistas de seus feitos e proezas."

terça-feira, 23 de março de 2010

Exposição de Hebreus X

"Ora, a fé é a substância das coisas que se esperam, a evidência de fatos que não se veem." (Hebreus 11.1)

A tradução que transcrevo desse famoso versículo é do próprio Calvino. Ela se opõe a Lutero, a João Ferreira de Almeida e a grande parte dos teólogos católicos do século XX, todos os quais usam os termos "certeza" e "convicção" no lugar de "substância" e "evidência", respectivamente, e concorda com Jerônimo e vários patrísticos e escolásticos, embora não necessariamente concordando com eles quanto ao sentido dessas palavras. Tais peculiaridades são relevantes para a compreensão adequada do trecho abaixo, em que o reformador de Genebra, partindo de considerações sobre essas duas palavras, tece alguns comentários sobre a relação entre a fé e a esperança, que o autor da epístola busca ressaltar ao longo de todo o capítulo. (Convém acrescentar que Calvino de modo algum considerava exaustiva a definição de "fé" dada nesse versículo.)

"Ele chama a fé de 'a substância das coisas que se esperam'. É de nossa experiência que o que se espera não se encontra ainda em nossas mãos, e sim o que está ainda escondido de nós ou, pelo menos, que seu usufruto é adiado para outro tempo. O apóstolo está dizendo a mesma coisa que Paulo em Romanos 8.24, onde, após dizer que o que se espera não se vê, chega à conclusão de que se deve esperá-lo com paciência. Daí nosso apóstolo nos ensinar que não devemos exercer fé em Deus com base nas coisas presentes, e sim com base na expectativa de coisas ainda vindouras. Há nessa aparente contradição um toque de atrativa beleza. Diz que a fé é a substância, ou seja, o arrimo ou fundamento sobre o qual firmamos nossos pés. Mas apoio do quê? Das coisas ausentes, as quais se encontram tão longe de estar sob nossos pés que excedem infinitamente o poder de nossa compreensão. A mesma ideia percorre a segunda cláusula, onde ele chama a fé de 'a evidência', que é a demonstração das coisas não visualizadas. Uma demonstração provoca o aparecimento das coisas, e comumente se refere somente ao que se acha sujeito aos nossos sentidos. Essas duas coisas aparentemente contradizem uma à outra, e no entanto estão em perfeita harmonia, quando nossa preocupação é a fé. O Espírito de Deus nos mostra as coisas ocultas, o conhecimento das quais não pode atingir nossos sentidos. A vida eterna nos é prometida; todavia, ela é prometida aos mortos. Somos informados sobre a ressurreição dos bem-aventurados; mas, entrementes, vivemos envolvidos em corrupção. Somos informados de que somos justos; todavia, o pecado habita em nós. Ouvimos que somos bem-aventurados; mas, entrementes, somos subjugados por inaudita miséria. É-nos prometida abundância de tudo quanto é bom; mas vivemos frequentemente famintos e sedentos. Deus proclama que virá nos buscar imediatamente; mas parece que é surdo ao nosso clamor. O que seria de nós, se não fôssemos sustentados por nossa esperança? E quantos de nossos pensamentos não emergem acima da escuridão e pairam acima do mundo, sustentados pela luz da Palavra de Deus e de seu Espírito? Portanto, a fé é com justa razão chamada de substância das coisas que são ainda objetos de esperança e de evidência das coisas ainda ocultas. Agostinho às vezes intercambia 'evidência' e 'convicção', do que não discordo, porque fielmente expressa a intenção do apóstolo. Prefiro o substantivo 'demonstração' ou 'evidência', porque é menos forçado."

sábado, 20 de março de 2010

Nem Marx nem Jesus V

É com muito esforço que resisto à tentação de transcrever o terceiro capítulo inteiro, muito embora eu mantenha desacordos razoavelmente severos com Revel - a começar pelo próprio título, Não houve revolução nos países comunistas. Transcrevo, contudo, dois trechos interessantes, o primeiro dos quais trata da economia precária dos países comunistas, sobretudo da União Soviética, enunciando uma opinião que será demonstrada com base em fatos adiante, no mesmo capítulo. O segundo trecho fica para outro post.

"A austeridade dos países comunistas não é uma austeridade do investimento, uma austeridade planejada e coerente devida, como se quis fazer crer, à 'acumulação socialista primitiva', e sim uma pobreza anárquica, devida ao rendimento precário de um aparelho produtivo mal dirigido. Em matéria de acumulação socialista primitiva, o que os soviéticos até hoje conseguiram foi buscar capital em bancos japoneses (isto é, americanos) e solicitar à Ford a instalação - às próprias custas, naturalmente - de uma fábrica de automóveis na Rússia. Em outras palavras, reclamam a honra de ser integrados no pelotão das nações neocolonizadas."

Isso me faz lembrar de um relato que recebi por e-mail de um conhecido virtual, em 2006. É um exemplo mais atual do mesmo princípio enunciado por Revel acima:

"Uma das imagens que mais me impressionaram nos últimos tempos foi em uma reportagem sobre o atual Vietnã. Mostrava um daqueles velhinhos que comandaram a guerrilha comunista que derrotou a águia em uma mesa, governando o país. Ainda usava farda. A reportagem falava sobre as condições de vida do povo vietnamita, e também o velhinho guerrilheiro fardado sorrindo por causa da inauguração do primeiro McDonald's na capital do seu país, afirmando que o negócio agora era atrair investimento estrangeiro."

quarta-feira, 17 de março de 2010

Exposição de Hebreus IX

Nessa fascinante epístola, como todos sabemos, ocupa o primeiro plano a relação entre o Antigo Testamento e o Novo, entre a velha dispensação e a nova, entre o judaísmo milenar e o cristianismo nascente. Assim sendo, o comentário de Calvino sobre ela é um bom lugar para verificarmos quanta atenção o reformador concede a essa mesma relação. Quanto a isso, devo confessar que estou impressionado. Não há citação da Lei, dos Profetas ou dos Salmos que não seja analisada em minúcias. O reformador francês sempre se preocupa em estabelecer a função retórica da citação, o contexto de sua origem, o significado natural para os judeus antigos e a natureza de sua relação com o advento de Cristo e o assunto discutido no contexto da epístola, bem como fazer considerações de cunho textual ou linguístico. Quando necessário, Calvino não teme se empenhar numa tentativa honesta e laboriosa de resolver discrepâncias percebidas entre o sentido original do trecho citado e o sentido atribuído pelo autor inspirado. Rigor semelhante se faz presente também na apreciação de meras alusões a eventos do Antigo Testamento, da história ou da cultura do povo judaico.

domingo, 14 de março de 2010

Duas culturas diabólicas

O que há em comum entre o marxismo e uma cultura tribal primitiva? Sem ter a pretensão de fornecer uma resposta exaustiva a essa questão, transcrevo abaixo dois trechos retirados de dois livros que pouco têm em comum. O primeiro é O totem da paz (The peace child, no original), do missionário canadense Don Richardson. Esse homem e sua família foram, nos anos 60, apresentar as boas novas a um povo canibal da Nova Guiné Papua (na época, Nova Guiné Holandesa) que jamais tivera contato com a civilização. O segundo é do livro Onde é que Cristo está ainda a ser perseguido?, de Richard Wurmbrand, pastor luterano romeno que muito se empenhou em levar o mundo comunista a Cristo. Vejam por si próprios se não há uma semelhança notável entre os dois relatos.

"Nas palestras subsequentes, ampliei mais a parte da vida e ministério de Jesus, procurando imprimir neles a realidade e relevância da pessoa de Cristo para a vida deles, mas aparentemente não obtive sucesso. Os sawis não estavam acostumados a projetar-se mentalmente para outras culturas e outras situações que fossem tão profundamente diversas da sua. Somente uma vez, em minha exposição, mereci uma reação significativa da parte deles. Eu estava falando da traição de Judas Iscariotes para com o Filho de Deus. Achava-me a meio caminho da explanação quando notei que todos ouviam atentamente. Davam atenção integral a todos os detalhes: durante três anos, Judas se mantivera em comunhão íntima com Jesus, partilhando do mesmo alimento, viajando nas mesmas estradas. [...] Chegando ao clímax da história, Maum soltou um assovio de admiração. Kani e vários outros tocaram o peito com a ponta dos dedos, num gesto que denotava grande assombro. Outros sorriram. A princípio, fiquei parado, sem entender o que se passava. Depois, finalmente, compreendi tudo: para eles, Judas era o herói da história."

"Em 1944, quando comecei o trabalho missionário secreto entre os soldados soviéticos que tinham invadido a Romênia, vi que, embora eu fale russo, eu não tinha uma linguagem em comum com eles. Quando lhes contei a história do homem que tinha cem ovelhas e perderam uma delas, eles objetaram: 'Nenhum homem pode ter cem ovelhas. Elas pertencem à cooperativa.' Quando lhes falei dos trabalhadores da vinha que se recusaram a dar ao seu proprietário o fruto, matando-lhes seus servos e seu filho, a resposta deles foi: 'Esses lavradores fizeram bem em se revoltar. O dono da vinha era um patrão, e sua propriedade tinha de ser confiscada.' Riam-se acerca da virgem Maria: 'Por que é que uma moça deveria ser virgem?' E Jesus, um Rei? Estavam possuídos da pior das opiniões acerca de reis. Não tinham uma ideia a respeito de fariseus, saduceus, herodianos, templo, altar, dízimo, salmos, Espírito Santo, nem mesmo o que eram anjos. Era-lhes impossível compreender o Evangelho, mesmo tendo-o traduzido em sua própria língua."

quinta-feira, 11 de março de 2010

Exposição de Hebreus VIII

Não é que eu já tenha lido uma imensa quantidade de comentários bíblicos, mas nenhum dos que li até hoje produziu em mim uma percepção tão forte da continuidade da obra (livro ou epístola) estudada quanto a que me acomete enquanto leio o comentário de Calvino à Epístola aos Hebreus. Como nunca li outro comentário de Calvino, e tampouco li outro comentário de outro autor sobre essa mesma epístola, não posso dizer quanto disso se deve à natureza do próprio texto e quanto pode ser creditado às qualidades do expositor. Qualquer que seja o caso, porém, o resultado é fascinante. Eu sempre ouvi falar - e sempre acreditei - que a divisão posterior da Bíblia em capítulos e versículos pode eventualmente atrapalhar a compreensão dos textos. Mas creio que é a primeira vez que tenho uma noção real da proporção que tal impedimento pode atingir. É claro que a inépcia e a falta de atenção do leitor (eu, no caso) contribuem muito para acentuar esse efeito. Darei um exemplo bem claro: como é que pude nunca ter percebido que o assunto do capítulo 11, que começa definindo a fé e é devotado inteiramente a ela, está em perfeita continuidade com a questão levantada nos versículos finais do capítulo 10?

Por falar nisso, os comentários de Calvino sobre esse trecho lançam alguma luz sobre a forte relação, já mencionada no segundo post, que ele via entre a fé e a esperança. A célebre afirmação de que "o justo viverá pela sua fé", citada de Habacuque 2.4 em Hebreus 10.38 (e também por Paulo em Romanos 1.17 e Gálatas 3.11), trazia, no contexto original do texto profético, uma exortação à confiança no cumprimento futuro das promessas divinas, conforme se vê no versículo imediatamente anterior: "se tardar, espera-o, porque certamente virá". Não é difícil ver de que maneira a fé e a esperança são aspectos complementares dessa atitude.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Nem Marx nem Jesus IV

No segundo capítulo, intitulado Cinco condições para uma revolta, Revel descreve os elementos que devem estar presentes para que uma revolução seja digna do nome. São pensamentos e atitudes críticos em cinco frentes: da injustiça nas relações econômicas e sociais; da gestão, contra o desperdício de recursos, a desorganização e a improdutividade; do poder político, indo do poder efetivamente exercido aos princípios que o legitimam; da cultura, incluindo religião, moral, filosofia e arte, sua função e sua má distribuição; e da civilização, que diz respeito à relação entre a sociedade e o indivíduo, enfatizando a falta de liberdade e de espaço para o desenvolvimento da individualidade.

É por esses critérios que Revel julgará a eficácia das revoluções, passadas ou futuras, ao longo do livro. Ele considera que tais condições estiveram presentes na Revolução Francesa, e ao que parece acaba, de um modo ou de outro, tomando-a como modelo. Como o trecho abaixo deixa claro, o filósofo crê que sem esses elementos não pode haver progresso real na estrutura da sociedade, e é desse ponto de vista que ele tece críticas a muitas outras revoluções. Quanto a mim, não creio em revoluções que trazem benefícios comparáveis aos males que causam, justamente por não ver evidência de exceção alguma. Revel tampouco as fornece; ele parece apenas se aproveitar do alto conceito que a Revolução Francesa possui no "imaginário popular" dos intelectuais de seu país, sobretudo pela esquerda, que parece ser o público-alvo principal do livro. Feita essa importante ressalva, transcrevo este interessante parágrafo, que tece críticas pertinentes ao espírito das muitas revoluções:

"Uma revolução não se faz de improviso, nem com rigidez doutrinal. Entre o espírito atabalhoado, que imagina inventar tudo na hora, no diálogo de surdos ou na confissão pública e, de seu lado, o espírito dogmático, preocupado só em saber se a revolução se assemelha bem a esta ou aquela revolução anterior, se está sendo feita dentro do figurino, o verdadeiro espírito revolucionário adota o método da invenção preparada, graças ao qual a porta da iniciativa fica sempre aberta a todos, mas em que a aplicação é sempre rigorosa, competente do ponto de vista técnico, e nunca de simples aproximação. Para a inspiração coletiva ficam, nesse caso, as grandes ideias da evolução histórica. Os meios de execução são avaliados friamente, em termos realistas. Nas revoluções que fracassam, ao contrário, as ideias gerais sao imóveis, cristalizadas, precisas demais, e a execução, que é vaga, não chega a modificar a realidade. Há burocratismo na cabeça e amadorismo nos atos."

sexta-feira, 5 de março de 2010

Exposição de Hebreus VII

"Lembrai-vos, porém, dos dias passados, em que, depois de serdes iluminados, suportastes grande conflito de sofrimentos; em parte, fostes feitos espetáculo, tanto por vitupérios como por tribulações; e, em parte, vos tornastes companheiros dos que foram assim tratados." (Hebreus 10.32-33)

Transcrevo abaixo as palavras de Calvino sobre esses dois versículos. Há aqui várias lições importantes que não terei o trabalho de listar. Os três parágrafos falam por si mesmos:

"Tencionando estimulá-los e despertar o seu fervor para que seguissem adiante, o autor traz à sua memória o exemplo de piedade que anteriormente demonstraram. É algo deprimente quando alguém começa bem no ponto de partida, para depois sentir-se desanimado em meio à jornada; ainda mais deprimente, porém, é voltar atrás depois de haver feito considerável progresso. Com esse propósito em vista, é sempre proveitoso recordar o combate passado, se o temos travado fiel e energicamente sob a bandeira de Cristo; não à guisa de buscar pretexto à indolência, como se já tivéssemos concluído o nosso curso, mas sempre prontos a alcançar o ponto final que foi posto diante de nós. Porque Cristo não nos recrutou sob termos tais que depois de alguns anos pudéssemos solicitar licença, como os soldados que já cumpriram seu serviço; ao contrário, é para que continuemos o combate até o fim.

Ele reforça sua exortação, dizendo que haviam realizado notáveis atos de bravura num tempo em que eram ainda recrutas. Resultaria, pois, vergonhoso se agora desertassem, depois de um longo tempo de experiência. O termo 'iluminados' se restringe ao tempo em que, pela primeira vez, começaram a servir a Cristo, como se dissesse: 'assim que iniciastes na fé em Cristo, enfrentastes acirradas e árduas batalhas; e agora vossa experiência deve ter-vos fortalecido para fazer-vos mais corajosos'. Ao mesmo tempo, ele os lembra que, se realizaram tais proezas, foi pela benevolência divina, de modo que sua fé deve estar posta nos esforços divinos, e não nos seus próprios. Os iluminados são aqueles que anteriormente estiveram circundados por trevas e destituídos de olhos que pudessem ver que de parte alguma qualquer luz resplandecera sobre eles. Sempre que venham à nossa mente as coisas que temos feito ou sofrido por Cristo, consideremo-las como outros tantos incentivos que nos estimulem a maiores proezas.

Assim, vemos que aqueles a quem o escritor se dirige são aqueles cuja fé fora testada por tribulações não triviais, e todavia não cessa de exortá-los a maiores esforços. Que ninguém se engane com ilusória gabolice, crendo que já alcançou o alvo, ou que não tem nenhuma necessidade de incentivos por parte de outrem. Ele diz que haviam se tornado 'espetáculo, tanto por vitupérios como por tribulações', como se houvessem sido exibidos em espetáculo público. Daqui concluímos que as perseguições que suportaram eram especialmente notáveis. É preciso que se note cuidadosamente a última cláusula, onde o escritor diz que foram companheiros de outros crentes em suas perseguições. Visto que a causa pela qual todos os crentes lutam é a causa de Cristo, a qual é comum a todos eles, sempre que um deles sofre, todos os demais também pessoalmente sofrem com ele, e isso deve ser praticado universalmente, salvo se desejamos separar-nos do próprio Cristo."

terça-feira, 2 de março de 2010

Nem Marx nem Jesus III

Por mais críticas que Revel tivesse a fazer às esquerdas todas, ele próprio era claramente um revolucionário. Enunciei essa impressão após ter lido o comentário de Mary McCarthy sobre o livro e seu autor e a resposta do próprio Revel, e essa impressão vai se confirmando nos primeiros capítulos: Revel simpatiza com os movimentos feministas e raciais, com a rebelião estudantil (americana ou europeia, mas principalmente a primeira), tem em alta conta a Revolução Francesa e até transmite em certos trechos a impressão de que, por mais que critique os socialistas, o que ele próprio deseja para a humanidade é, no fim das contas, alguma forma de socialismo. Revel é do tipo que critica o comunismo apenas por não ter feito o que ele considera uma "verdadeira revolução", deixando tudo como sempre esteve - como se essa ideologia não tivesse tornado as coisas muito piores do que haviam sido até então. Bem, ao menos era isso que ele pensava em 1970. Se criou juízo mais tarde, não sei.